Realidade e sonho

Inclino-me a pensar que o contentamento humano brote do encontro entre realidade e sonho. Digo e penso imediatamente em D. Quijote. Há uma fronteira sinuosa, aparentemente muito mal definida, que une o real ao imaginário e parece progenitora da satisfação. O sonho, por si só, afigura-se-me qual impotente se desprovido de ligação com o concreto. É necessária uma ponte, um elo, ainda que sob a forma da esperança, do “irá acontecer”. De outra forma, o prático rapidamente esmaga o imaginado, gerando desalento e vergonha. Isso, é claro, em mentes saudáveis. Por outro lado, a realidade será sempre débil porquanto insuficiente: necessita, também, de um amplificador, algo que embeleze e tonifique a crueza do concreto. E isso, ainda que de forma sutil, não é senão fantasiar o real. Por isso intriga-me até que ponto D. Quijote não viveu o que sonhou, ou até que ponto viveu efetivamente. Louco ou mestre? Falta-me a resposta…

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A repressão do subconsciente

É interessante notar como a repressão do subconsciente, ou de uma esfera talvez autônoma do próprio consciente, parece necessária para que a realidade se não torne insuportável. Primeiramente, pela repugnância inata ao aleatório e irracional. Depois, pela necessidade de unidade comportamental e psicológica. O conflitante, a dualidade, a incerteza são quase intoleráveis à natureza humana, portanto uma escolha é forçosa: uma escolha consciente, que envolve um esforço ativo e não se resume senão na negação intencional de uma face da realidade. Assim, parece necessária a falsificação da vida em prol do prático. O caminho alternativo é assustador. Negar o confronto, demais, é um belo truque para não perder…

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O sábio enxergará utilidade…

O sábio enxergará utilidade
Dando azo à besta que lhe habita a mente,
Que despertando pô-lo-á consciente
Do imoralismo que lhe é qualidade.

A besta atende ao élan da vontade
E, à sobre-excitação, põe-se fremente;
Lascívia, cana, ou outro entorpecente
No corpo fogo são que o monstro invade.

Então, selvagem, como que possesso,
Comete o sábio algo que não diz,
Sabendo o impulso não provir do acesso.

E, com pesar de ter feito o que quis,
Aprende, embora pávido e depresso,
E é mais sábio sabendo-se infeliz.

(Este poema está disponível em Versos)

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O mato americano e o mato brasileiro

Não nego: lendo Thoreau, convenci-me de que meu lugar é o mato. E a tentação de largar tudo e partir para a selva foi patente. Porém, lembrei-me de ter lido, também, o enorme Gilberto Freyre. E que diferença para o mato americano e o mato brasileiro! Dois anos na selva, banhando-se no rio, e Thoreau não é mordido nem uma única vez por uma espécie peçonhenta, não tem a plantação assolada por pragas, não sofre com a infestação de mosquitos ou formigas… Assim, o mato realmente parece a paz. Pergunto: quantos se atreveriam a caminhar em mata fechada, à meia-noite, sem lanterna, a replicar Thoreau em solo brasileiro? Talvez eu seja um covarde… De qualquer forma, continuarei sequioso de meu mato, ainda que sua configuração envergonhe profundamente o filósofo…

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