Fausto, de Goethe

Tive o prazer de ler Fausto, de Goethe, em tradução de um dos mestres de nossa língua: António Feliciano de Castilho. Em primeiro lugar, sobre a tradução: historicamente, meu critério quase único para escolher traduções tem sido buscá-las diretas do original, a julgar que, assim, a nova obra granjeia maior fidelidade à obra-mãe. Hoje vejo que, sem dúvida, sempre negligenciei o fator determinante de uma tradução: a qualidade do tradutor enquanto artista. Costume mesquinho esse de buscar pelos livros mais baratos… Traduções são obras distintas, quase que separadas das originais, por isso o tradutor, caso se arrisque ao trabalho dificílimo de pôr em seu idioma os versos de grandes poetas estrangeiros, tem de ser, também, grande poeta. E Castilho, repetindo, é um dos mestres de nosso idioma. A mim foi surpresa saber que sua versão portuguesa de Fausto, Castilho a não derivou da original alemã, e sim mediando três versões portuguesas e quatro francesas. O resultado foi um poema belíssimo. De fato, se vemos os recursos expressivos, a eufonia dos idiomas como que irreplicáveis, — e são, — o derivar ou não do original perde preponderância frente à qualidade do poeta tradutor. Agora sobre Fausto: a obra, composta ao longo de sessenta anos por Goethe, data de há quase dois séculos. Como não empatizar, ou por outra: como não assumir o problema do dr. Fausto como o nosso? De início, a obsessiva busca pelo saber: em certa medida, é impossível que a não julguemos como infrutífera e vã. Em seguida, a consequência talvez natural: a perda do prazer, da satisfação, do encanto pela vida terrena. Depois: a ausência de medo, a insubmissão, a revolta do espírito e, evidente, o desamparo. Que esperar desta vida? Há sentido para a ação? A vida terrena é, de alguma forma, virtuosa? Há, enfim, redenção para essa espécie doente que se convencionou chamar de homem moderno? Goethe, em Fausto, faz música enquanto arrisca respostas admiráveis.

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O medo do ridículo

Na era do marketing pessoal compulsivo, da vida paralela sempre linda em redes sociais,  do teatro raso da autoestima e da motivação, da procupação estupidamente obsessiva com a própria imagem, julgamos valiosa mais uma aula do mestre Nelson Rodrigues, em palavras que parecem saídas de um século distante:

(…) Sei que, falando assim, lembro, talvez, o pastor de Chuva, antes do pecado. Não faz mal. Vivo a dizer que considero o ridículo uma de minhas dimensões mais válidas. O medo do ridículo gera as piores doenças psicológicas.

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Períodos curtos e ritmo

Folheio alguns manuais de escrita, leio artigos de estudiosos das letras e percebo uma certa obsessão com os períodos curtos enquanto formadores de estilo. Não nego: períodos curtos, de fato, agregam dinamismo a qualquer texto. Mas estilo é um misto entre expressividade, concisão e ritmo, e se podemos dizer que períodos curtos dinamizam, os longos, por sua vez, aprofundam. Vamos ver: Nelson Rodrigues. Esse mestre, em especial em suas narrativas de ficção, lançou mão com extrema perícia dos períodos curtos. Entretanto, temos de pensar: como são os romances rodriguianos? Logo veremos que Nelson, propositalmente, imprimiu dinamismo às narrativas, posto os enredos se lhe desenvolvessem em progressão acelerada, gerando apreensão e expectativa. É uma técnica, instiga o leitor. Mas Nelson sabia, como poucos, imprimir ritmo aos seus textos, e não são raros os períodos em que o mestre divaga, se estende, diluindo a tensão germinada em períodos precedentes. Vejamos agora o outro lado: penso em Dostoiévski, Thomas Mann, Hermann Broch. Que seriam esses autores sem seus períodos extensos? Ou antes: como imprimir profundidade na narrativa sem se servir de parágrafos robustos e longas construções? É possível? Evidente… mas é inegável que seja esta uma técnica apurada. Tudo é uma questão de perguntar-nos: o que desejamos escrever? Uma narração objetiva? Descrever a sequência de uma ação? Ou afundar uma personagem numa reflexão? Evocar o devaneio no leitor? São objetivos diferentes. E se, como tenho lido mais de uma vez, períodos longos podem sugerir afetação, provocar enfado, sobejar detalhes fúteis, sem dúvida uma narrativa desenvolvida exclusivamente em períodos curtos soará como rasa, entrecortada e banal.

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O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer

O mundo como vontade e representação… Penso nessa obra sempre em desalento, porquanto ela tratou de atacar violentamente minha já tíbia dimensão humana. A história é antiga. Lembro-me de que, assim que me pus a estudar filosofia, passou a ser recorrente o nome de Schopenhauer. De início, busquei estudar a história da filosofia, em perspectiva abrangente, a tornar possível que eu estruturasse um plano de estudos de longo prazo para, assim, iniciar-me o contato direto com as obras. Seja qual fosse a fonte, lá estava o autor direcionando palavras amargas a Schopenhauer, associando-o a um pessimismo radical, apontando-lhe o viés nocivo da obra. Pouco depois, li um ou dois livros de Schopenhauer: vi inteligência, mas nada de tão calamitoso; deixei-o de lado e prossegui nos meus estudos. Então continuei a ouvir Schopenhauer, sempre Schopenhauer, quando me lembro de que li um ensaio excelente de Thomas Mann, autor que tenho em alta estima. Mann, no ensaio, explora e externa a influência de Schopenhauer na própria obra, agradecendo por ter lido o filósofo no início da carreira. Entretanto, classifica a obra de Schopenhauer — cujo coração é O mundo como vontade e representação — como filosofia para “jovens”, dizendo, em seguida, Schopenhauer ter trabalhado até o final de seus dias para justificar, com “sinistra fidelidade”, uma filosofia juvenil. Depois desse trecho perdi completamente o interesse por Schopenhauer, ignorei tudo o que o próprio Thomas Mann havia dito a respeito das marcas profundas que Schopenhauer gravou-lhe para o resto da vida. Quer dizer: eu, aos vinte e poucos anos, achava-me imune a qualquer tipo de “filosofia para jovens”, imune e desinteressado. Então o tempo correu. Mais à frente, Nietzsche, que tantas vezes grafou o nome do ilustre compatriota. Antes de Nietzsche, e mesmo antes de estudar filosofia, Machado de Assis, cuja obra prendeu-me e encantou-me por anos a fio. Quando passo a estudar Machado de Assis pela crítica, o susto: influência notória de Schopenhauer. Então me decido: lerei este tal O mundo como vontade e representação. Hoje, é difícil encontrar palavras para descrever esse livro e seus reflexos em minha vida. Recordo Thomas Mann associar Schopenhauer à busca pela morte em vida: talvez seja uma boa definição para a obra. O que posso dizer é que, para mim, foi leitura sem volta. Há evidente sabedoria no livro, que não é senão uma extensa meditação. Mas essa obra, se lida como se deve ler qualquer obra, com sinceridade e dando crédito ao autor, é um autêntico veneno, e talvez o mais potente. Aí está: li O mundo como vontade e representação e tenho estima, admiração por Schopenhauer; mas Schopenhauer, terminantemente, não é autor para mim, um indiferente nato, misantropo incurável, várias vezes acusado de insensível e com ceticismo correndo pelas veias. Schopenhauer cuidou atrofiar-me ainda mais a dimensão humana, exterminou-me as ilusões, contaminou-me para sempre. Hoje em dia é moda ter “opiniões”, “convicções”, ler um livro e dizer “concordo” ou “não concordo”. Quão fácil seria minha vida fosse-me a mente adepta a tal simplificação… Leria O mundo como vontade e representação e diria, com dedo em riste: não concordo! Terminei a leitura, pois, e julguei nada tivesse ocorrido. Segui meus estudos, toquei adiante. Estava imerso em alguns autores franceses. Os meses passaram, e senti-me imune à filosofia exposta no livro. Quanta ingenuidade… Precisou correr um ano para que eu percebesse ecoando em minha mente, todos os dias, as palavras desse livro infesto: “felicidade é não sofrer”, “o desejo é fonte inesgotável de sofrimento”, “negar o desejo”, “negar a vida”… E percebi-me impregnado até a unha de indiferença, alheio a tudo o que um dia valorizei. Julguei-me os atos e vi que nada mais havia que me fosse caro como outrora, tornei-me um túmulo, distante de todos, inclusive os mais próximos. Eu, que nunca fui fã de mim mesmo, que sempre me julguei nocivo, pernicioso, menos humano que os demais; eu, que sempre fui contra os meus próprios instintos, tendo-me em péssima estima, medindo palavras o tempo inteiro a não frustrar as pessoas, vi robustecer e solidificar-me quiçá para sempre o lado mais sombrio, mais detestável de minha personalidade. Tudo contra minha própria vontade, imposto, impelido por esse maldito O mundo como vontade e representação que, mesmo que eu tente negar, talvez tenha sido a leitura mais impactante de toda a minha vida.

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