Luiz Felipe Pondé e o problema genômico

No ensaio Da ciência e do medo, disposto em seu Do pensamento no deserto, Luiz Felipe Pondé faz uma reflexão interessantíssima a respeito do que podemos chamar de “problema genômico”.

Diz ele que certa vez, “andando pelo jardim do campus de uma das maiores e mais ricas universidades do chamado “primeiro mundo””, conversou sobre genômica e os riscos da engenharia genética com um grupo de técnicos em genética e biologia molecular. Deu-se o seguinte:

Uma das técnicas afirmou que não entendia a parafernália que a filosofia e a ética inventavam sobre a ciência em geral, mais especificamente criticava ela o blablablá sobre os possíveis desdobramentos sociais da atividade concreta e diária do laboratório genômico.

Então Pondé prossegue no ensaio, como respondesse à estimada proletária da ciência, esmiuçando todos os impactos que uma indústria genômica robusta traria em termos éticos, sociais e morais. É um cenário assustador.

Estamos falando de engenharia genética, inseminação artificial, gestação mediante úteros artificiais, — quem sabe? — incubadoras e tudo o que não se pode imaginar da evolução desta marcha aplicado em larga escala.

Pondé mostra-nos como o processo é inevitável e atacará o ser humano em sua dimensão mais íntima, destruindo interiormente importantes fulcros formadores de sentido, tudo impulsionado por um irrefreável desejo de emancipação. Com a moral sepultada pelos ganhos da técnica, restará finalmente o vácuo, exposto e inconsolável.

Mas que fazer? Como evitar o desastre? Não há que fazer. A ciência servirá de amparo ao processo, calcando-se em suas numerosas maravilhas.

Eis como Pondé engenhosamente presume o avanço da indústria genômica:

A tendência, como no caso de nossa agente social genômica, será a mediação burocrática operada pelas instituições competentes. No plano psicopragmático e sociopragmático, o que estará em jogo é a continuidade do processo emancipador — e aqui deveríamos levar em conta de modo mais sério a pragmática publicitária: “dê a seu filho o que há de melhor em você!”, ou “você não está se preocupando com o futuro de sua família?” “Previdência é a palavra-chave”. Uma tendência à reorganização social em base bionômica é irreversível. (…) Uma ampla frente de normalização será posta em prática: normalização securitária (inclusão dos bens genômicos nas apólices de seguro de saúde), normalização jurídica (definição de direitos genômicos), normalização pedagógica (definição da meta pedagógica como produção de indivíduos horizontalmente psico-bio-sociofelizes), normalização psicológica (definição da personalidade integrada como o direito a biofelicidade sem culpa), normalização social (combate a privatização dos bens genômicos), normalização política (campanha contra os preconceitos biofundamentalistas — o dogmatismo naturalista de raiz platônica a serviço do medo e da culpa — e contra o genismo, entendido como discriminação com base no menor capital genômico dos indivíduos excluídos da prática preventiva).

Sobra-nos, como sempre, a resignação e o sorriso cínico a estampar na face…

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O martírio de Camões

Um trecho do prefácio do segundo tomo das Obras Completas de Camões, em edição de 1843, assinado por J. V. Barreto Feio e J. G. Monteiro, passa ideia da dimensão do sofrimento do insuperável poeta:

Em todos os povos, qualquer que fosse a forma de seu govêrno, hão sido sempre odiados e mais ou menos perseguidos, segundo as conjuncturas dos tempos, os summos e verdadeiros Escritores; isto he, os que á força do pensar e á elegancia do dizer unírão em summo grao o amor da verdade e da justiça. Não puderão as leis de Athenas proteger a innocencia de Socrates contra as calumnias de um Melilo, Seneca em Roma não pôde evitar a morte debaixo da tyrannia de um Nero; e a estes puderamos ajuntar uma infinidade de escritores desta classe, philosophos, poetas e oradores, que em diversos tempos e por diversos modos soffrêrão a mesma sorte. Mas Luis de Camões foi mais infeliz que todos: se lhe não fizerão beber a cicuta, se lhe não abrirão as veias, amargurárão-lhe a vida com toda a especie de desgosto, e depois de o haverem trazido de masmorra em masmorra, e de degredo em degredo envolto na mais esqualida miseria, com um refinamento de tyrannia, cuja descoberta estava reservada aos tempos modernos, ·o obrigárão a submetter seus escritos a uma junta de idiotas e hypocritas., e escurecer elle mesmo sua propria fama, rejeitando o que lhe agradava, para adoptar 0 que elles querião; e por fim de tudo o condemnárão a morrer de fome·; morte muito mais cruel.

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Estrelas funestas, de Camilo Castelo Branco

Suspeito Camilo Castelo Branco seja o maior prosador da língua portuguesa… É realmente impressionante o patamar a que este português eleva o nosso idioma. Nestas Estrelas Funestas, Camilo, afora o estilo, conduz brilhantemente o arco dos personagens de forma a operar uma completa transformação no julgamento do leitor. Não há um único ponto de desafogo na narrativa. Desde o início, a obra prende e comove. São cento e poucas páginas narrando um casamento forçado desaguar em desgraça. O marido, bom homem, vê-lhe o orgulho transformá-lo num monstro atroz. A esposa, neurótica e intratável, vê-lhe o instinto materno transformá-la na personificação do amor. A filha, doce menina de fado maldito, sofre na carne e na alma o pior dos destinos. Desfecho implacável, obra magistral.

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O fundamento da literatura

Charles Bally, linguista suíço, faz uma reflexão virtuosíssima em seu Traité de stylistique française. Está ele exaltando a importância da língua falada, com toda a sua carga subjetiva, para a linguagem literária: diz a língua literária alimentar-se e rejuvenescer-se da língua falada. Em seguida, diz o prazer estético derivado da forma literária estar diretamente relacionado com a língua falada, uma vez que tal prazer não é senão a captação de uma “deformação sublime” operada pelo artista, que só é percebida através da comparação. Reforça Bally que a emoção, a qualidade das ideias ou sua organização jamais foram suficientes para consagrar uma obra literária, não nos permitindo citar uma única obra-prima que lhe obteve a consagração abstendo-se da forma. Charles Bally então conclui, em outras palavras, que o dia em que não houver a forma, e não houver o contraste entre a língua falada e a língua literária, não haverá mais língua literária, e a literatura estará morta. Excelente, excelente! Agora analisemos a progressão da poesia e da prosa ao longo dos séculos e tiremos nossas conclusões…

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