Imposições do acaso

Se somos, em alguma medida, reféns do acaso, da sorte, da natureza e das circunstâncias; se uma doença pode surgir subitamente e aniquilar-nos; se um assaltante pode cravar-nos uma bala no peito por capricho; se um acidente de trânsito pode calar nosso último suspiro; se nossa moradia pode vir a desabar; se um incêndio repentino pode reduzir-nos a cinzas; se nossos queridos podem inopinadamente nos abandonar; se podemos ver embarcados um avião a cair; se nossos maiores planos podem mostrar-se estúpidos, ou serem aniquilados por algum infortúnio; se toda a nossa vida pode não render uma única piada e desfazer-se na imensidão da espécie e na vastidão do tempo, não vejo postura inteligente que não parta da humildade.

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O idiota, de Fiódor Dostoiévski

O idiota, de Fiódor Dostoiévski, é certamente um livro que abordarei em outras oportunidades. A obra, assim como Don Quijote de la Mancha, de Cervantes, é genial e pode confundir os incautos. Como disse em outra ocasião, agradeço muito não ter taxado esse livro de cômico, e o fiz somente por tê-lo lido já com algum preparo intelectual. Dostoiévski consegue, mais nesse do que em outros livros, dar amplitude à sua obsessão por personalidades tocadas pelo divino. O príncipe Míchkin, protagonista do livro, é a personificação do que se pode atingir de mais nobre enquanto ser humano. Dotado de bondade e complacência infinitas, o príncipe gera empatia onde quer que passe; entretanto, é incompreendido: seus semelhantes associam-lhe a candura à inocência, à falta de tino, taxando-o de idiota. Dentre todas as temáticas em Dostoiévski, é a deste O idiota a que mais me fascina: a elevação humana passando necessariamente pelo aniquilamento da vaidade. Míchkin sabe-se um incompreendido, ou melhor: sabe os outros julgarem-lhe um idiota; e mesmo assim não altera sua postura complacente para com ninguém. Que importa o que os outros pensam? Míchkin parece imune à concupiscência, e é capaz de fitar a maldade nos olhos, sendo luz pelo contraste com as sombras que evidencia em seu redor. Sua bonomia agride, molesta, e o convívio só lhe expõe a superioridade moral. Idiota? Assim como Aliócha, de Os irmãos Karamázov, parece Míchkin caminhar entre os homens para provar a assimetria entre o humano e o divino, a miséria e a graça, o terreno e o celestial. E prova-nos, indubitavelmente, toda a pequenez dos pequenos desejos, das pequenas vaidades e do orgulho, que aniquila o que talvez seria a única virtude humana digna deste nome.

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Amores incuráveis

Damos novamente espaço à pureza gramatical e profundidade de Camilo Castelo Branco:

Os olhos, durante a morosa convalescença, choraram-lhe de contínuo; os sonhos eram-lhe ainda suplícios de que despertava em brados e soluços; não obstante, a cura do amor, que chora, é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstringente de uma lágrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuráveis são os que desabafam em rancorosas explosões.

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A contingência em Nassim Nicholas Taleb

Nassim Nicholas Taleb, matemático hoje bastante conhecido no Brasil, agora que marqueteiros aprenderam a usar seu nome para vender consultorias, é certamente muito mais do que um trader. Se grande parte dos idiotas que vendem recomendações de compra no mercado acionário tivessem realmente lido Taleb, aprenderiam o seguinte: o homem não pode prever o futuro. Taleb, cuja obra evidencia a invalidade de quase tudo o que se produziu em finanças modernas, ensina que o cálculo de risco é problemático por procurar estabelecer um comportamento futuro baseado em comportamentos passados. E que, de praxe, sempre que tentarmos prever o futuro, estaremos reféns da incerteza. É engraçado, pois o cérebro humano parece induzido por uma tentação incontrolável de sistematizar o desconhecido; simplesmente não aceitamos a indefinição, a ausência de resposta lógica, e então nos colocamos a elaborar teorias, a arriscar explicações para os fenômenos que nos rodeiam, buscando um padrão objetivo de sequência dos eventos e considerando que padrões necessariamente se repetem, uma vez que o universo é regido por leis estáticas. Segundo Taleb, sempre que arriscamos previsões e não deixamos margens para um evento inesperado, ou que projetamos o futuro baseado no passado, estaremos frágeis. Matematicamente falando, isso quer dizer que não podemos considerar que algo não irá acontecer apenas porque não tenha acontecido anteriormente. Ou seja: a probabilidade estimada de nada, e absolutamente nada, pode ser zero, pois estimativas requerem uma margem de erro. Toda vez que leio Taleb fico com a sensação de que apostar no improvável pode ser mais coerente (além de ter payoff mais alto), e que a contingência, questão já abordada filosoficamente com diversos nomes (incerteza, aleatoriedade, fado, fortuna…), parece ser a verdadeira força motriz dos eventos determinantes da história. Assim, desdenho sorrindo do meteorologista e sua tara por quantificar eventos futuros, enquanto aprendo a respeitar o índio que, impassível olhando ao céu, sabe-se refém da própria sorte.

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