Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre

Aí está algo que me desagrada: classificar estas notas por temática. Burocracia irritante, quando quero simplesmente escrever. Sobre o que escrevo exatamente? Eis um enigma — mas quem se importa? — E outro enigma muito mais difícil, e tão pouco importante quanto, seria classificar esta Casa-grande & senzala. Aqui, contentamo-nos com “história”. Mas seria mesmo história? Ou sociologia? Antropologia? Um ensaio ou literatura? Nenhum destes ou tudo isso misturado? Gilberto Freyre, ainda em vida, teve de ouvir numerosas críticas aos mais diversos aspectos da obra, contudo ainda hoje, quase um século após sua publicação, não há, talvez, um único livro capaz de mostrar-nos com tamanha abrangência e detalhamento os aspectos de formação da sociedade brasileira. A obra entrega o contexto histórico, psicológico, antropológico e sociológico desde os princípios da colonização analisando a evolução e os precedentes da vida cotidiana em diferentes núcleos sociais. Os críticos bem apontam Gilberto Freyre ter deixado de preencher alguns formulários… Verdade, verdade… Os formulários… As 72 páginas de bibliografia da obra deveriam ser, naturalmente, 572. Mas se o leitor, indulgente e benigno, for capaz de lidar com esse descuido imperdoável, esteja certo de que Casa-grande & senzala entregará, em linhas de intelectual apaixonado pelo país em que viveu, o cheiro dos séculos passados — cheiro esse, aliás, incrivelmente semelhante ao que exala de nossa pele.

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Motivação reversa

Finalizo, após longo dia de trabalho, o enredo de meu segundo livro. Tenho, agora, trinta contos finalizados, em volume já revisto, e dezesseis poemas prontos para publicação. O trabalho destes dias é um romance que finalizarei nos próximos meses. Definido o enredo, assusto-me: horrível! Horrível e frustrante… Sinto, de antemão, repugnância pelo que me porei a escrever e meu desejo sincero é atear fogo a tudo quanto escrevo, desistir imediatamente da empreitada que me tomará um tempo enorme, um esforço psicológico descomunal e noites amargas pensando no que escrevi. Porém percebo que, se o fizer, já me não sobrará razão para acordar. Vejo rindo para mim esse sarcasmo terrível e, sabe-se lá de onde, vence-me um estranho sentido de dever que, incrivelmente, imbui-me uma motivação inabalável. Desgostoso, encontro-me dependente e refém deste dever.

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Ingratos, de D. Pedro II

Um soneto de D. Pedro II direcionado àqueles que escreveram talvez as páginas mais vergonhosas da história brasileira, cuspindo em obra e memória do mais honrado de seus compatriotas:

Não maldigo o rigor da iníqua sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dous passos só estou da morte.

Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta variedade,
Que hoje nos dá contínua f’licidade
E amanhã nem — um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,

É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs — outrora.

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A pátria das letras

Estive em Paris a meados de 2019. Logo ao desembarcar, deliberei: aproveito a estada e levo algumas obras que tenho dificuldade em encontrar no Brasil.

Pois bem. Foi-me a primeira vez na cidade. Aconselharam-me a buscar pelos livros em pequenos sebos à borda do Rio Sena, pela altura do Louvre, para encontrar os melhores preços. Lá fui e chegando, vejam vocês, encontrei não uma, mas vinte tendas enfileiradas, até perder a vista, todas elas abarrotadas de livros. “Estou na pátria das letras” — foi o que concluí.

Então comecei a fazer contas: não tinha espaço nem dinheiro para levar tudo o que queria comprar. Teria de escolher, digamos, quatro ou cinco autores e só. Desejava, de qualquer maneira, uma versão física de Les fleurs du mal, de Baudelaire; Aveux et anathèmes, de Cioran, era outra compra indispensável. Decidi-me, pois, e perguntei ao primeiro vendedor: “Avez-vous quelque chose de Baudelaire, Cioran, Flaubert ou Maupassant?“. O quelque chose soou-me como insolência. Ali certamente estariam as obras completas de todos os autores…

O vendedor procurou, procurou, procurou e voltou-me a resposta: “Non“. Segui à próxima tenda; novamente a resposta: “Non“. Então passei em cada uma das barraquinhas, sempre fazendo a mesma pergunta, e sempre obtendo a mesma resposta. Quando recebi o último “non” e notei que se haviam acabado as tendas, simplesmente não acreditei, pensei ser impossível a cena que eu havia acabado de vivenciar.

Havia, como disse, umas vinte tendas, cada uma delas com duas, talvez três centenas de livros. Como é que nenhuma dispunha de uma única obra de Charles Baudelaire, o maior poeta do século XIX? Vá lá que os franceses não leiam Cioran, mas Baudelaire? Flaubert?

Foi que me deu na cabeça a pergunta óbvia: “Se não há Cioran, Flaubert, Maupassant ou Baudelaire, de que é que essas tendas estão abarrotadas?”. E, acreditem vocês ou não, varrendo a prateleira mais próxima com os olhos, lá encontrei, em posição de destaque, L’alchimiste, de Paulo Coelho.

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