Falta de maturidade e discernimento

Em nossos dias há um narcisismo e uma preocupação excessiva com o sucesso que são um claro sinal de falta de maturidade e discernimento. Ninguém mais se aceita medíocre. Ou vê-se acima do que é, ou vê-se melhor em um futuro próximo. É claro que isso só pode desembocar em depressão. Fico a pensar quão mais leve calha a vida a quem diz ao espelho: “És medíocre! Tua existência não faz a menor diferença ao mundo! Em cem anos, ninguém lembrará de ti!”.

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N’um album, de Alexandre Herculano

Hoje, meu poema preferido do formidável Alexandre Herculano:

Quando o Senhor envia
O trovador ao mundo,
Faz devorar a essa alma
Fel amargoso e immundo;

Porque lhe diz: — “Poeta,
Vai conhecer a terra;
Prova dos seus deleites;
Prova do mal que encerra.

Desses e deste esgota
As taças muitas vezes,
Embora de uma e d’outra
Aches no fundo fézes:

E quando bem souberes
Que tudo é sonho vão;
Que é nada a dor e o goso,
Sólta o teu hymno então.”

E o pobre desterrado
Vem seu mister cumprir.
Nasce: homens e universo,
Tudo lhe vê sorrir;

E o seu balbuciar
Um canto é d’innocencia:
Mas outro foi seu fado;
Guia-o a providencia.

É cherubim precíto
Qu’ inda entrevê o céu,
Mas através da vida,
Mas através de um véu.

Em turbilhão d’affectos,
Seu íntimo viver
Rapido lhe devora
Sperança, amor e crer.

Do goso nos deli­rios
Debalde busca o amor;
Saudade melancholica
Pede debalde á dor.

Depois, desanimado,
Pára a pensar em si,
Acha no seio um ermo,
E tristemente ri.

É desde aquelle instante
De um acordar atroz,
Que ao condemnado lembra
Do que o mandou a voz.

Então entende e cumpre
Seu barbaro destino;
Então é que elle aprende
A modular um hymno.

Virgem, ao que assim passa
Por meio do existir,
Calcando os frios restos
Do crer e do sentir,

Não peças te revele
Sua alma na poesia,
E dê aos pensamentos
O encanto da harmonia;

Porque lá, nesse abysmo,
Não resta uma illusão:
Só ha perpetua noite,
E injuria e maldicção.

Não entenderas, virgem
Ainda innocente e pura,
O canto que surgira
Dessa alma gasta e escura.

Deixa-o seguir seu norte,
Cumprir missão cruel;
Deixa-o verter o escarneo;
Deixa-o verter o fel;

Deixa-o cuspir em faces
Onde não ha pudor,
E ao mundo, ebrio de si,
Rindo ensinar a dor.

As sanctas harmonias
De cantico innocente
Sabe-as o alvor do dia
Quando rompe do oriente;

Murmura-as o regato;
Vibra-as o rouxinol;
Vem no zumbir do insecto,
No prado, ao pôr do sol;

Vivem no puro affecto
Da filial piedade,
Nos sonhos e esperanças
Da juvenil idade.

Esta poesia é tua:
Eu já a ouvi e amei;
Mas hoje nem a entendo,
Nem repeti-la sei.

Assim, meu nome só
Escreverei aqui;
Som vão, intelligivel
Apenas para ti;

Extincto candelabro
Do templo do Senhor,
Que por algumas horas
Deu luz, teve calor;

Lenda de sepultura,
Que fala em gloria e vida,
E esconde ossada infecta
Dos vermes corroída;

Pinheiro solitario,
Que o raio fulminou,
E que gemeu tombando,
E não mais murmurou.

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Crítica: O poder da autorresponsabilidade, de Paulo Vieira

Mal começo estas linhas e sinto o dedo tremer, hesitante em digitar. Pergunto à minha consciência: “Escrevo?” — e ela responde-me: “Não!”. Levanto-me, deixo a mesa e vou à janela, a refletir. A consciência pesa-me, censura-me renitentemente. Estou pensando: “Se eu não quiser, não escrevo: o texto ainda está em branco”. Estaco. O que julgo acertado? Escrever. Há, para mim, algum tema proibido? Não. Ora, então devo escrever… Decido voltar. Sento-me novamente: vou escrever! Escreverei! Mas a consciência põe-se a gritar, de joelhos e desesperada: “Não faça isso! Não escreva esse texto!”. Debalde… é impossível! Sou teimoso e vou escrever.

Assim, é com imensa alegria que inauguro neste sítio um método inovador de crítica literária: criticarei um livro que não li. “Como?”, irrompe a pertinente pergunta. Mas não há segredo no processo: não lerei; então darei minha sincera opinião. Vejamos se o método é ou não digno de apreço.

Abro uma lista com os livros mais lidos no Brasil em 2019. Instintivamente, meu olho crava em Paulo Vieira, O poder da autorresponsabilidade: A ferramenta comprovada que gera alta performance e resultados em pouco tempo. A extensão do título me não permitiu registrar em tempo: fui alvo de duas agressões visuais. A primeira, ao lado do nome do autor: lê-se PhD; a segunda, pouco abaixo, onde se lê: “O homem que impactou mais de 20 milhões de pessoas”.

Crispo na cadeira. E confesso, sinceramente, meu desalento. Creio mais sensato desistir da empreitada. Criticarei um PhD sem lhe ler a obra? Tenho de ser um imbecil para atrever-me a semelhante disparate… Por que, primeiro, não trato de buscar meu PhD? Minha cara não queima? Vocês dão risadas, mas minha obsessão impele-me a abrir a prévia gratuita do livro disponível na Amazon. Tomo um susto; percebo que, ao clicar na imagem da capa, Paulo Vieira impacta 20 milhões de pessoas adicionais: agora estou diante do “homem que impactou mais de 40 milhões de pessoas”.

Ponho-me a analisar a primeira página. “Autorresponsabilidade”, “receita infalível”, “resultados em pouco tempo”… leio essas coisas e penso em Voltaire. Paulo Vieira tenta incentivar-me: “Desperte todo o poder que existe em você”, mas não consigo senão pensar no Eclesiastes. Será que o Paulo Vieira leu o Eclesiastes? Vasculhando o sumário, cravo a vista no terceiro capítulo: “O caminho universal do progresso humano”. Súbito, ouço Voltaire a gritar: “Ô malheureux mortels! ô terre déplorable!“.

E imagino, por um capricho, Pangloss a palestrar com Paulo Vieira: “Oh, doutor Paulo Vieira! Como tudo é tão simples! O método do senhor é um verdadeiro balde de luz! Estou a imaginar quão melhor seria o mundo caso tivéssemos, eu e o senhor, nascido no princípio dos tempos: Roma certamente não pegaria fogo; Lucano se não haveria matado; Édipo não lhe haveria matado o pai e… Doutor Paulo Vieira! creio que esteja dizendo tolices. O que ocorreu haveria de ocorrer e tudo está tão perfeitamente bom qual deveria estar…”.

Continuo, congelado, frente ao sumário do livro. Sei que não posso prosseguir. Então me vem a reflexão: onde é que está o problema? Por que as pessoas compram Paulo Vieira ao invés de Shakespeare? Pois percebo minha profunda hipocrisia: eu mesmo já comprei paulos vieiras, e sei exatamente o que espera alguém que compra um paulo vieira. Sei também que, ao fechar um manual infalível, imediatamente se faz necessário um manual adicional.

Estamos fazendo crítica: devo eu, pois, tocar fogo em Paulo Vieira? Penso que não; o problema não está em Paulo Vieira, nem em quem compra Paulo Vieira. O problema, em verdade, está na estupidez do livro, que promete uma absoluta impossibilidade: transformar o ser humano — balda engenhoca — em uma máquina de alta performance.

Então me imagino, alegre, entrando numa livraria. Procuro pelos best-sellers, e dou-me com a obra de Paulo Vieira. Compro um volume e enveredo de volta à minha residência. Satisfeito da escolha, vejo-me, no caminho, determinado a tornar-me uma pessoa melhor. Chego em casa, fecho a porta e dirijo-me ao banheiro, folheando a nova aquisição. Subitamente, sinto latejar um profundo desconforto. Estaco, sentindo a decepção a pulsar. Então alço a vista: vejo um cínico incurável no espelho. Torno a mirar o livro, em desalento: “Autorresponsabilidade… isso não é para mim; em minha casa, o lugar desse livro é na lata de lixo”. Vou ao quarto e procuro por um volume de Voltaire.

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A vida como ela é…, de Nelson Rodrigues

Ameaço bater na tecla e, antes que bata, uma esposa trai seu marido. Meu dedo toca o teclado e outra consorte replica a ação. Não fecho a primeira linha e milhares de esposas — ou seriam milhões? — traem seus maridos, impreterivelmente, em diversos países e diversos idiomas. Dois mil contos Nelson escreveu em série, dia após dia, durante dez anos, em redor do mesmo tema: o adultério. Então é justa a pergunta: não teria ele exagerado? Não poderia ele, talvez, ter escrito um pouco menos? De casa, escuto o estalar do cinto no vizinho. Não; Nelson, indubitavelmente, acertou em medida.

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