Solenidade ao rezar

Por que é que os evangélicos — lá vou eu meter-me onde não devo… — improvisam as preces? Penso e a conclusão é inevitável: sempre que, escutando um evangélico a rezar, a frase murcha, a palavra falha ou o sentimento se não expressa com potência, vejo atirada ao ridículo a seriedade da oração. Pergunto-me se apenas eu estou a reparar o descompasso da frase não planejada que, mostrando-se impotente, recorre à entonação para expressar-se e — desculpem-me a sinceridade — deveria envergonhar. Tão mais bonita é a oração pronta, e mais quando silenciosa. Deve ser algum defeito de discernimento, mas vejo como clara a relação entre silêncio e reflexão, silêncio e respeito, silêncio e solenidade. E importuno-me com a pergunta sem resposta: por que o homem de fé não segue o exemplo de Deus e se cala?

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A substância destas linhas

Atiro estas notas como se estivesse fumando, e meu prazer não consiste senão em vê-las se perdendo no ar. A mim, a graça de escrever parece-me saber da inutilidade das palavras, saber que elas se dissolvem e voam. Há na arte, entretanto, algo de nobre: a renúncia à vida. Batendo no teclado abstenho-me do tédio de viver, num desinteresse genuíno e total. A vida nada me pode oferecer, e nada espero dela. Brinco ritmando as frases, alternando a colocação das palavras, pensando em imagens e rindo-me ao conversar com o computador. Para além da janela, o mundo prossegue como habitual. Mas o mundo me não insufla senão de repulsa. Refugio, pois, cá como em uma caverna, um retiro, onde acho graça dizendo em silêncio, para ninguém, distante do rumor insuportável da vida. Sei que estou a construir castelos de areia, contudo aí está a substância que permeia estas linhas: a indiferença.

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A unidade da alma

Vamos do luminoso Dante Alighieri, na tradução de Italo Eugênio Mauro:

Quando, seja por júbilo ou pesar
Que faculdade nossa experimente,
Nela nossa alma inteira se empenhar,

Vemos que nenhuma outra ela consente:
E isso refuta o engano de quem crê
Que uma alma sobre a outra em nós se avente.

Portanto, quando se ouve algo, ou se vê,
Que tenha forte a si a alma voltada,
O tempo passa sem lhe darmos fé,

Porque uma é a faculdade a ele aplicada
E outra é a que nos toma a alma inteira;
Aquela é solta e esta lhe é ligada.

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As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Primeiro, o especialista; depois, o amador. Vamos ver alguns dos comentários de Otto Maria Carpeaux sobre As viagens de Guliver, de Jonathan Swift:

Jonathan Swift — clérigo humanista, fiel-infiel à Igreja da qual era sacerdote — é um dos maiores satíricos da literatura universal, talvez o maior de todos. Gulliver’s Travels é o livro mais cruel que existe. As atividades febris e inúteis dos anões de Lilliput ridicularizam a vida parlamentar na Inglaterra do século XVIII e em todos os países e épocas de política constitucional e profissional. Esboçando esse panorama político, Swift lembrou-se dos seus tempos de panfletário a serviço do partido conservador, dos tories; é uma sátira mordaz contra os whigs. Mas logo depois, Swift descreve o regime patriarcal no reino dos gigantes de Brobdingnag; e este não é nada melhor. Ao contrário, o tamanho dos gigantes torna grotescamente enormes todos os pormenores, isto é, as infâmias das “classes conservadoras”. Tampouco são melhores os intelectuais que, no país de Laputa, vegetam como imbecis completos. Na última parte, o elogio dos Houyhnhms, isto é, dos cavalos, mais nobres e mais inteligentes que os homens, é a condenação absoluta do gênero humano in totum. Enfim, o episódio dos Struldbrugs, que devem ao progresso científico a imortalidade da vida, não escapando, porém às doenças, fraquezas e senilidade da extrema velhice, e que não conseguem morrer, já condena a própria vida. As inúmeras digressões espirituosas e mordazes — a descrição dos horrores da guerra como se fossem as coisas mais naturais do mundo, o escárnio dos dogmas e ritos cristãos, incrível na boca de um alto dignatário da Igreja — revelam em Swift o representante mais radical do racionalismo na Ilustração; nem sequer Voltaire ousou tanto.

Aí estão as lúcidas palavras de Carpeaux — e há muito mais delas sobre Swift em História da Literatura Ocidental (vol. 2). — De minha parte, digo o seguinte: As viagens de Gulliver foi, talvez, o livro que mais me marcou. Sempre volto a ele, releio passagens, e tenho-o pulsando em mim. Quando escrevo e, por um momento, creio exagerar em meus julgamentos, penso em Swift. Lembro-me que Nelson Rodrigues disse uma vez que a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. Segundo esse raciocínio, poucos livros purificam tanto como As viagens de Gulliver; julgamento de que compartilho. A “grande alma, nobre e ferida” de Swift — ainda usando palavras de Carpeaux — é capaz de impregnar-nos de um profundo desconforto e repulsa para com nossa natureza; porém, sem dúvida, acaba tornando-nos pessoas melhores.

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