Se houver mesmo um inferno em que os hipócritas padeçam, que saiba a sociedade moderna onde irá aventar seu verbo e implantar suas convenções. A hipocrisia é a substância desta dita era do marketing e está arraigada no âmago de sua fundamentação. Sem hipocrisia, já não há relações sociais: é por ela que o homem moderno exibe-lhe a inteligência e a boa educação. “Era do marketing”, e hipocrisia é uma bela versão portuguesa de marketing. O mundo seria mais honesto se o bom trabalhador dissesse: “Trabalho com gestão de hipocrisia”. Mas é claro que jamais o fará. O bom trabalhador não pode sequer ser sincero com os companheiros de trabalho, com os vizinhos, com os amigos, com a família… Será que o inferno comporta tanta gente? Por outro lado, dois caminhos há para o não hipócrita moderno: (1) operar um aniquilamento total das relações sociais ou (2) viver normalmente, sob a pena de ser amplamente odiado e malquisto em todos os círculos, senão desempregado ou pedinte. Fora disso é história…
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Sexta-feira!
Algo absolutamente impossível para um homem de outros tempos seria compreender o que se passa no peito, nas veias e na mente da esmagadora maioria dos homens modernos quando o calendário declara ser sexta-feira. Sexta-feira! Maravilhosa sexta-feira, em que o sol raia prenunciando a alforria de milhões de almas! E o homem moderno, banhado desta bênção magnífica, sente-se tomado de uma euforia emocionante e indescritível. Uma vez por semana, experimenta uma efusão tão forte que homens de outros tempos talvez passassem a vida inteira sem sentir qualquer coisa semelhante. Lágrimas, júbilo, berros e gratidão aos céus! Sorriso no rosto e o peito querendo explodir! Na quinta nunca há esperança, é como se o escravo já estivesse há longos e exaustivos anos trabalhando fatigado, infeliz, abatido, e ciente de que assim teria de passar o restante de sua vida medíocre e frustrante. Então a sexta-feira! sempre inesperada sexta-feira! a prova cabal de que Deus existe e a vida não é assim tão má! Em hipótese alguma um homem de outros tempos seria capaz de compreendê-lo — e, provavelmente, também não compreenderão os do futuro, posto o mundo laico já não necessite das mordomias de um calendário cristão…
O complexo de vira-lata
Estou pensando em Nelson Rodrigues e seu célebre diagnóstico:
Por “complexo de vira-lata” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.
Não posso deixar de fazer ressalvas. Quanto aos pretextos, deixo para uma próxima. Vamos hoje do princípio do raciocínio. Nelson travava relações com pessoas da melhor instrução. Sua análise é precisa quando aplicada aos brasileiros ilustrados ou, em outras palavras, aos brasileiros cientes de que o planeta se não resume no Brasil. Há uma distância imensa entre a visão de mundo do que podemos chamar de “classes cultas” e da plebe brasileira. Admira a Europa, os Estados Unidos aqueles que lá estiveram ou, ao menos, aqueles que de lá têm algum conhecimento. Nas classes mais baixas, o “complexo de vira-lata” não só é inexistente, como transmuta-se no fenômeno oposto. O brasileiro médio, isto é, o inculto, ufana-se de patriotismo e estufa o peito para falar do Brasil. Se não declara inexistentes todos os outros países, então para com eles demonstra uma hostilidade impressionante. É conversar com pouco instruídos e descobrir que muitos deles possuem opiniões fortíssimas contra a China, contra a Rússia ou contra várias outras nações, mesmo incapazes de apontar-lhes num mapa a localização. É dizer ao brasileiro médio coisas como a grandeza do território, a potência natural, a diversidade e, especialmente, o futuro de seu país e vê-lo, emocionado, a dizer pelos olhos de qual complexo padece.
Estoicismo aplicado à inteligência emocional
A partir do momento em que empresários, ou seja, homens do dinheiro, ou seja, homens que dedicam a vida a crescer financeiramente, expandir negócios, conquistar mercados e todo o resto, a partir do momento em que esses homens fazem discursos citando Marco Aurélio e Sêneca ou, como eles dizem, os “estoicos”, então o melhor é queimar de uma vez todos os livros, porque eles são inúteis e nada ensinam. O marketing talvez seja a mais odiosa das ciências por não ter escrúpulos, por apropriar-se de tudo quanto se apresenta útil para vender. Num bom dicionário, haveria de ser descrito como a arte da mentira. Ver aberrações conceituais como “estoicismo aplicado à inteligência emocional” é algo que poderia conduzir à indignação ou desespero. Não conduz, porém, desde que o mundo passe a ser encarado como é: um circo ridículo e infame.