O desígnio da “grande obra”

Goethe, nas Conversações, lamenta o ter-se deixado seduzir pelo desígnio da “grande obra”. Diz saber o quanto ele o prejudicou e se arrepende de ter-se permitido bloquear a mente para suas valorosas manifestações espontâneas que, embora reclamassem atenção, tiveram de ser descartadas em prol do objetivo maior. Compreensível… não é difícil admitir que algo se perca devido a essa necessidade de concentração do esforço que é imperiosa para a criação de uma “obra de vulto”, como diz Goethe. Mas talvez seja um preço justo, como talvez seja arriscado apostar todas as fichas em uma obra fragmentária, de inspiração ocasional. Muito de Goethe deriva do Fausto, e se algo perdeu ele com criá-lo, ora, ganhou-o afinal! É muito difícil aderir integralmente à recomendação de evitar as “grandes obras” quando vemos que delas proveio o melhor de parte considerável dos grandes autores. Se, por um lado, é justíssima a observação de que são elas perigosas, e de que talvez não sejam indicadas à maioria dos artistas, por outro lado nalguns casos parece extremamente proveitosa a canalização dos esforços para uma única finalidade.

Após entranhado o costume do período conciso…

Após entranhado o costume do período conciso, direto e objetivo, tão em voga nestes dias, que o têm como quase exigência do estilo, é um prazer o mergulhar esporádico na passada de outros tempos, lenta, cadenciada, parecendo evidenciar que não se faz arte com pressa, que a atenção pede detalhes, adiciona nuances, singulariza enquanto se vai estendendo. Imergir neste vagar é como que fugir da banalidade moderna, e a medida que os períodos progridem ficamos com a sensação de uma profundidade que escapa a este tempo, que perdeu-se em prioridades fúteis e transformou-se em inimigo daquele estado tranquilo que acentua a tendência humana para a contemplação.

A flexibilidade sintática latina

O estudante resistente o bastante para vencer as terríveis dificuldades oferecidas pelo latim terá como prêmio o acesso ilimitado à verdadeira beleza que é a flexibilidade sintática latina, tão intrincada para o cérebro educado pelas línguas românicas modernas. Este que é um dos mais notáveis distintivos do português perante outras línguas atuais, fazendo com que estas pareçam duras e prosaicas, no latim é como que o sumo recurso do mestre, cujo manejo denuncia o próprio gênio daquele que discursa. Apreciar a variedade sintática das construções latinas é, em verdade, apreciar o grau de criatividade com que o autor articula a linguagem, variegando e surpreendendo. Sem dúvida, é um prazer que justifica o esforço de anos para aprender o latim.

Não há dúvida que foi e tem sido deletério…

Não há dúvida que foi e tem sido deletério para a língua portuguesa o movimento simultâneo, por parte da intelectualidade, de aproximação da língua inglesa e distanciamento do latim e do francês. O fato é patente e deu-se menos por escolha que por necessidade. Contudo, hoje, é possível constatar quanto se perdeu. Se refletimos sobre a condenação veemente que fizeram gramáticos de outrora a respeito dos galicismos que invadiam a língua portuguesa, ficamos com a falsa impressão de que o francês estava a contaminar o vernáculo, quando, em verdade, teve efeito majoritariamente enriquecedor, saltando aos olhos naqueles que talvez sejam os maiores prosadores do idioma: Eça, Camilo e Machado. A influência francesa, pois, ora inexistente, mais fez conferindo beleza ao discurso português. Quanto ao latim, enxotado das escolas e universidades, o lamento é ainda maior. É escusado listar o que perde o falante português abdicando do estudo da língua latina, posto que inutilmente muitos já o fizeram, como Napoleão Mendes de Almeida. Ocorre que o intelectual médio, hoje, é formado com vistosas deficiências não somente vernaculares, como cognitivas: raciocina pior por dificuldade na articulação do raciocínio, por incapacidade de ordenar o discurso — algo que poderia ser prevenido pelo estudo do latim. E se nos voltamos para a perda estética, ainda mais considerando ser o inglês o substituto da língua latina, a situação é ainda mais lastimável. Que fazer?