Somente dois momentos prazerosos

Na criação poética, talvez haja somente dois momentos prazerosos: o da ideação e, naturalmente, o da conclusão. O primeiro resume-se à ilusão, o segundo ao alívio. No restante do processo, não há senão luta e mais luta. Acerta-se um verso, mas a satisfação de um átimo desaparece perante a necessidade de acertar também o seguinte. Assenta-se a ideia, mas carece o verso de rima; coadunam-se ideia e rima, mas o ritmo desagrada. E assim sucessivamente, e isso somado à necessidade de encontrar palavras que, quando precisas, não se ajustam às necessidades do verso. O processo se assemelharia à montagem de um quebra-cabeça, não se tratasse este de matéria inócua a ser concatenada, não se tratasse este de um passatempo em cujo sucesso ou fracasso o praticante exime-se de consequências existenciais.

A língua entranha-se no próprio pensamento

Nunca escrevi uma linha em inglês, entre as centenas de milhares já saídas de minha cabeça, que não fosse a tradução de um pensamento concebido em português. Nem mesmo num e-mail. E imaginar a batalha travada por tantos escritores do último século, que adotaram voluntariamente uma nova língua para criar literatura… Não se pode conceber um escritor para o qual a língua se limite a um veículo de expressão. A língua entranha-se no próprio pensamento, que através dela se constrói. A estrutura lógica do pensamento não se calca senão na estrutura sintática da língua em que é modelado; são ambas inseparáveis, não podendo a primeira medrar sem a segunda. As palavras, em diferentes línguas, sucedem-se e organizam-se de maneiras distintas; uma evidência não de uma diferença formal, mas de uma distinção entre o gênio dos homens que nelas se desenvolvem. Alterá-lo, já velho, parece um choque de tremendas proporções.

Variar o estilo

Se não necessário, é no mínimo saudável que o escritor varie periodicamente o estilo, o formato, o gênero aos quais conforma as ideias que tem. Assim é por inumeráveis motivos, a começar por quão estimulante é o fazê-lo, e também pela tomada gradual de consciência das possibilidades expressivas que jamais se esgotam. Mais do que isso: neste exercício, descobre-se que há lugares mais adequados para ideias e ideias, e evita-se o ter de misturá-las todas — porque certamente virão variadas na mente criativa — num só formato. O melhor, pois, é variar como Voltaire; e é bom que o escritor o tenha em mente, caso assim não proceda espontaneamente.

Quando se perde um rascunho

Quando se perde um rascunho, mas persiste na memória aquilo que foi esboçado, dá-se algo interessante. Percebe-se ser possível restaurar o rascunho percorrendo novamente as mesmas etapas do raciocínio que o concebeu; mas não ser possível restaurá-lo palavra por palavra, exatamente como era. Nota-se, então, que algo se perde no processo. Disso conclui-se que se pode dizer o mesmo um dia após o outro, renovando-o pela maneira como se diz; contudo, fica entranhada neste como a singularidade do momento em que se disse e, enfim, o rascunho perdido é mesmo o momento que se foi…