Realidade e sonho

Inclino-me a pensar que o contentamento humano brote do encontro entre realidade e sonho. Digo e penso imediatamente em D. Quijote. Há uma fronteira sinuosa, aparentemente muito mal definida, que une o real ao imaginário e parece progenitora da satisfação. O sonho, por si só, afigura-se-me qual impotente se desprovido de ligação com o concreto. É necessária uma ponte, um elo, ainda que sob a forma da esperança, do “irá acontecer”. De outra forma, o prático rapidamente esmaga o imaginado, gerando desalento e vergonha. Isso, é claro, em mentes saudáveis. Por outro lado, a realidade será sempre débil porquanto insuficiente: necessita, também, de um amplificador, algo que embeleze e tonifique a crueza do concreto. E isso, ainda que de forma sutil, não é senão fantasiar o real. Por isso intriga-me até que ponto D. Quijote não viveu o que sonhou, ou até que ponto viveu efetivamente. Louco ou mestre? Falta-me a resposta…

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O mato americano e o mato brasileiro

Não nego: lendo Thoreau, convenci-me de que meu lugar é o mato. E a tentação de largar tudo e partir para a selva foi patente. Porém, lembrei-me de ter lido, também, o enorme Gilberto Freyre. E que diferença para o mato americano e o mato brasileiro! Dois anos na selva, banhando-se no rio, e Thoreau não é mordido nem uma única vez por uma espécie peçonhenta, não tem a plantação assolada por pragas, não sofre com a infestação de mosquitos ou formigas… Assim, o mato realmente parece a paz. Pergunto: quantos se atreveriam a caminhar em mata fechada, à meia-noite, sem lanterna, a replicar Thoreau em solo brasileiro? Talvez eu seja um covarde… De qualquer forma, continuarei sequioso de meu mato, ainda que sua configuração envergonhe profundamente o filósofo…

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A ausência de uma concepção mais nobre

Penso no grosso da literatura do século XX. O ser humano é um animal multifacetado, ambíguo, sujeito a manifestações diversas e contraditórias. Nele, o selvagem mistura-se ao sublime em proporções variáveis — e, geralmente, desbalanceadas. Um autor, pois, não erra quando o retrata como escravo do desejo, fantoche da vontade. E acerta em cheio quando explora a irracionalidade e o avesso à moral. Entretanto, uma pausa. Há no homem a manifestação do belo, e amputada é a obra que se exima de explorá-la. Dar vida ao espécime humano mais arcaico e animalesco é tarefa, digamos, menos difícil que ousar penetrar a mente do modelo que se eleva acima do banal. Por isso, o autor será menor caso fuja da tarefa de conceber o raro. Onde está o nobre? Inexistente? É o que parece dizer grande parte da literatura incapaz de engendrá-lo ainda que, como Swift, sob a forma de cavalos…

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Um animal inadaptado [2]

Forçado a esperar numa fila, sem nada para ler, aproveito o momento em divertida atividade: arriscar uma lista das coisas que mais detesto. Vamos lá: (1) dissimulação, (2) burocracia, (3) demagogismo, (4) grupos de pessoas, (5) marketing, (6) expansividade, (7) ruído de vozes humanas, (8) conversação fútil… Listo e tenho uma ideia. O sorriso é imediato. Novamente, percebo-me um animal inadaptado. Considero, talvez, que minha existência seja um enigma evolucionista. Possuo incontáveis manifestações contrárias ao meio, de forma que arrisco minha própria natureza ser o retrato da inadaptação. Em mim, o intro e o extra relacionam-se em hostilidade, repelem-se de forma total sem que haja qualquer conciliação possível. Nego, recuso-me deliberadamente a integrar o meio, ainda que falhe e seja perseguido de forma insuportável. Lembro-me das palavras de Thoreau: “Wherever a man goes, men will pursue and paw him with their dirty institutions, and, if they can, constrain him to belong to their desperate odd-fellow society”. Oh, vida irritante! convenções insuportáveis! falatório estúpido!… Adeus, nota, até você causa-me fastio.

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