Pretensão moderna

O desenvolvimento científico, com sua inestimável contribuição para a humanidade, trouxe um progresso inédito na história. O brilhantismo do aprimoramento da técnica, da solução de problemas antes tidos como insolúveis, da elevação drástica do padrão médio de vida ofuscaram de forma total as demais áreas do conhecimento. Entretanto, a sociedade moderna contaminou-se com a sensação estúpida de autossuficiência. O erro humano, por ser em grande parte mitigável, já não é visto como ameaça. A filosofia, a teologia e as ciências sociais tornaram-se, se muito, secundárias. Enquanto escrevo, aviões voam e órgãos vão sendo transplantados. Observo os avanços, vejo volatizada a sensação de progresso, percebo brilhar a ilusão de que o homem está próximo do ápice — apesar de faltar-me tino para saber que exatamente seria esse ápice… — Vejo, acima de tudo, a confiança dos estúpidos. Vejo a voracidade das tecnologias que se impõem sem pedir licença, mudam a realidade como num relampejar; destroem aperfeiçoando e, por aperfeiçoarem, acabam inquestionáveis. Percebo no limbo qualquer hierarquia de valores. O que já foi núcleo de sentido, as relações, hoje são frágeis, substituíveis, virtuosas enquanto úteis. Os sábios, sobretudo, estão com a cara enfiada num celular; torcem pelo barateamento dos implantes… Se falam — e deveriam! — o fazem baixinho, em sussurros quase inaudíveis. Onde estão os limites? Não há limites para o homem! Esquecemos do valor do fútil, esquecemos que desastrosos são os bem-intencionados. A consciência da falha, da perversão e da cobiça sucumbiu dando luz à esperança absoluta, que não é senão a certeza do sucesso. Acabo constatando o óbvio: a estúpida pretensão moderna só pode desembocar numa desilusão total e atroz.

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Natureza maldita

Vamos de Blaise Pascal:

Nada é tão insuportável ao homem quanto estar em pleno repouso, sem paixões, sem negócios, sem divertimentos, sem atividades. Ele então sente seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Imediatamente sairá do fundo de sua alma a angústia, o negrume, a tristeza, a aflição, o despeito, o desespero.

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A paciência

Está aí uma grande qualidade: a paciência. E o que é, em suma, a paciência? Podemos dividi-la da seguinte maneira: o saber da transitoriedade do presente e o saber dos efeitos do tempo. Quase nada de verdadeiramente valioso, verdadeiramente capaz de trazer-nos orgulho se nos afigura desprovido do vigor somente dado pelo tempo. Quero dizer: o tempo fortalece e aprimora nossas qualidades, nossos feitos, e a paciência é a virtude necessária para deixá-lo agir. E quanto ao que nos aflige e nos desconsola? Transitório. O que nos alegra? Também. O tempo amplifica, mas atenua. Assim, qualquer que tenha algum objetivo, um propósito ou uma meta suficientemente relevante, ou que se sinta extremamente alegre ou desconsolado em determinado período, faz bem em desenvolver essa sábia virtude que é a paciência.

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Cândido, ou o otimismo, de Voltaire

Assim como A revolução dos bichos, de George Orwell, é a melhor vacina contra o comunismo, Cândido, ou o otimismo, de Voltaire, é a melhor vacina contra a risível noção contemporânea de autossuficiência do homem. “Você pode conseguir o que quiser”, “o mundo é uma projeção do seu interior”, “pensar positivo é a chave para o sucesso”, e outros muitos jargões contemporâneos são facilmente derrubados pelo escárnio de Voltaire. E se temos hoje ressalvas quanto ao julgamento da filosofia de Leibniz feito em Cândido, em decorrência do redescobrimento deste filósofo já no século XIX, a obra imortal de Voltaire não deixa jamais de perder seu valor instrutivo. Em suma, Voltaire coloca Cândido diante da impotência humana perante o meio, da implacável maldade humana em todas as terras e do vil desejo que comanda nossas ações. E Cândido, mesmo encontrando o paraíso terrestre após uma sucessão escandalosa de desditas, decide deixá-lo após julgar que neste país seria “como todos os outros” e que não estaria na companhia de sua amada — que, segundo seu julgamento, já deveria dispor de novo amante; — mostrando-nos como o homem é refém da própria natureza e da própria ambição. Podemos tirar de Cândido, pois, uma lista de lições, dentre elas estas, valiosíssimas em nosso tempo: humildade perante as nossas possibilidades, vergonha perante a ambição que nos domina e reverência perante o fado que nos assola.

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