O escritor deve sempre se lembrar do exemplo de Dostoiévski que, sendo o mais ferrenho crítico do niilismo, é tido pelos niilistas como um dos seus. Isto só se dá porque Dostoiévski coloca-se inteiramente sob o ponto de vista de seus personagens, de forma que, quando estes se manifestam, são indistinguíveis as ideias de seu criador. Mais que esforço, atingir tal grau de manifestação artística exige uma predisposição: aquela que busca, sobretudo, fazer justiça ao objeto retratado; aquela que, numa palavra, chamamos de sinceridade.
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Há uma maneira infalível de identificar…
Há uma maneira infalível de identificar a inclinação política dos escritores que abordam literariamente esta temática. A técnica é muito simples, e resume-se a verificar o tratamento dispensado aos personagens “maus”. De um lado, temos uma corrente que os cria sempre ambíguos, sempre complexos, nunca inteiramente maus; do outro lado, temos a corrente que não consegue pintá-los senão estereotipados, como representando o mal absoluto, desprovidos de qualquer virtude. Aqui se nota, em primeiro lugar, a radical diferença nos resultados: no primeiro caso, temos em geral obras interessantes, realistas e instigantes; no segundo, são porcarias praticamente ilegíveis, estúpidas até mesmo para os partidários da ideologia despudorada, que não se envergonha de arruinar a tentativa literária. A técnica, portanto, evidencia menos o grau de paixão política que a postura dela derivada: o primeiro grupo humaniza e busca compreender o adversário; o segundo só pensa em destruí-lo. Nada mais é preciso dizer; qualquer um é capaz de identificá-los.
Noturno, de Fagundes Varela
Quando confrontamos um poema como este Noturno, de Fagundes Varela, com as bobagens que se consagraram no último século, ficamos com a sensação de que a poesia brasileira suicidou-se diante de aplausos da plateia. De um lado, temos uma alma que sangra e brada em versos, uma alma que se vale da arte em sua manifestação mais nobre, como transmissora da experiência mais íntima, mais intensa, mais sincera; já do outro lado… É mesmo um insulto o mero cotejar tais motivações, o mero supor que acaso sejam comparáveis. Não é pouca a coragem necessária para dar voz ao sentimento manifesto neste Noturno. Provando tê-la, Varela mostra não estar brincando de fazer poesia, e portanto não deve nunca, jamais ser comparado aos popularíssimos e aclamados brincalhões.
O brasileiro, hoje, cresce desprovido…
O brasileiro, hoje, cresce desprovido de um ambiente cultural compartilhado. Cresce sem saber o que é, por exemplo, literatura. E se por acaso a descobre, se um milagre desperta-lhe a curiosidade por ela e então procura o lugar em que escrevem os grandes autores, em que os grandes críticos estão a apresentar e criticar obras literárias, a disseminar o que de melhor se escreveu e se tem escrito, ele não o encontra, porque esse lugar não existe. O que há de bom são páginas amarelas e desbotadas, compráveis de segunda mão. E é curiosíssimo notar que, hoje, mesmo o que se escreve sobre literatura, não se escreve, mas se fala: o formato da alguma crítica literária que subsiste, compelida pela audiência, é o vídeo. Livros e letras tornaram-se intragáveis. Esse fracasso cultural assombroso, causa de um fracasso humano ainda maior, não ocorreria jamais num país que dispusesse ao menos de uma elite culta, porque esta, se verdadeiramente culta, tomaria para si a obrigação de algo fazer pela cultura, de algo fazer pelo país. Mas não, não… o melhor, agora, é nem instigá-lo, porque o mecenas possível é um mecenas já existente e desgraçadamente deturpado.