Há poucos exercícios tão saudáveis e estimulantes quanto personificar o imortal Bernardo Soares. Em mente, conversar com os inexistentes ou distantes pares, viver o que as circunstâncias impedem, criar o que a vida não permite… tudo isso numa prática que progressivamente enriquece os detalhes, altera os cenários, amplia-se e evolui. O fazê-lo é abrir uma nova dimensão para a vida, é engrandecer-se mediante experiências impossíveis, aperfeiçoando o raciocínio, desafiando-se, experimentando emoções todas novas num plano onde não há limites ou impedimentos. É deixar, por fim, o disfarce de ajudante de guarda-livros para efetivamente viver a realidade que escolher.
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Por todas as vezes que gargalhei…
Por todas as vezes que gargalhei do temperamento explosivo de Cioran, de sua maravilhosa fúria na fila de mercearias e inúmeras outras situações que recordo-me sempre em risadas, parece que estou, agora, a pagar por elas, e parece direcionarem-me gargalhadas do céu. Todas as banalidades estúpidas que me compõem a rotina, a porta que deve abrir para que eu saia de casa, a balança que deve funcionar para que eu pese e compre comida, o sol que deve altear para que eu saiba ser dia… todas essas coisas banalíssimas, que sempre funcionam porque têm de funcionar ou, melhor dizendo, todos os seres humanos cuja função de alguma forma me afeta, juntos e ao mesmo tempo, deixam de cumpri-la, mas com o capricho de interromperem-me a rotina e estorvarem-me com problemas os quais não tenho meios para resolver! Cioran certamente gargalha; é o preço: agora é minha vez de fazê-lo rir… Mas é incrível notar a impossibilidade da paz neste mundo. Buda é um personagem folclórico: no mundo real, haveria alguém para tirá-lo do sério e arruinar-lhe o progresso espiritual.
Idêntico mecanismo de estimulação mental
Linhas curiosas deste Aleister Crowley, em Eight lectures on Yoga:
Suppose I want to evoke the “Intelligence” of Jupiter. I base my work upon the correspondences of Jupiter. I base my mathematics on the number 4 and its subservient numbers 16, 34, 136. I employ the square or rhombus. For my sacred animal I choose the eagle, or some other sacred to Jupiter. For my perfume, saffron—for my libation some preparation of opium or a generous yet sweet and powerful wine such as port. For my magical weapon I take the sceptre; in fact, I continue choosing instruments for every act in such a way that I am constantly reminded of my will to evoke Jupiter. I even constrain every object. I extract the Jupiterian elements from all the complex phenomena which surround me. If I look at my carpet, the blues and purples are the colours which stand out as Light against an obsolescent and indeterminate background. And thus I carry on my daily life, using every moment of time in constant selfadmonition to attend to Jupiter. The mind quickly responds to this training; it very soon automatically rejects as unreal anything which is not Jupiter. Everything else escapes notice. And when the time comes for the ceremony of invocation which I have been consistently preparing with all devotion and assiduity, I am quickly inflamed. I am attuned to Jupiter, I am pervaded by Jupiter, I am absorbed by Jupiter, I am caught up into the heaven of Jupiter and wield his thunderbolts. Hebe and Ganymedes bring me wine; the Queen of the Gods is throned at my side, and for my playmates are the fairest maidens of the earth.
O paralelo com a arte é perfeito. Quer dizer: tanto o mago, quanto o artista, possuem idêntico mecanismo de estimulação mental. Seguindo os passos descritos por Crowley, isto é, incitando-se progressivamente em torno de um mesmo objetivo, sem dúvida é de se esperar uma espécie de êxtase, de extravasamento psíquico no ato da concretização desta longa sequência de esforços. Tornando as lentes ao artista, ou melhor, ao poeta, é de fazer rir o sentar-se ante a folha branca à espera da “inspiração”. Certamente, um poeta que assim procede é antiprofissional. O sentar-se, na arte, é o que representa a cerimônia na magia: o artista sério deve fazê-lo somente após completa a preparação necessária e quando a sentir-se inflamado, explodindo pela expressão de determinada ideia ou sentimento. Assim alcança, após meticulosidade científica nos aprestos, o estado de espírito propício para que lhe brote em mente o brilho e a justeza na expressão.
A vocação exige afirmações regulares
Graças a Fernando Pessoa, tenho percorrido caminhos que jamais imaginei. Avanço sobre as repulsas, sobre os receios, sobre o desinteresse, e vejo-me oscilando entre indiferença e curiosidade. Uma curiosidade intelectual, é verdade. E então? Então que se me abriram possibilidades, digamos assim, e o horizonte intelectual do poeta mostrou-se-me mais vasto do que julgava. A vocação exige afirmações regulares e variegadas, tem de fortalecer-se mediante elementos diversos da realidade, isto é, tem de afirmar-se por eles, absorvendo-os em si. E parece-me que os insólitos caminhos trilhados por Pessoa contribuíram sobremaneira para que ele se convertesse no que é — noutras palavras, para que ele atingisse um grau raríssimo de afirmação.