Realidade e sonho

Inclino-me a pensar que o contentamento humano brote do encontro entre realidade e sonho. Digo e penso imediatamente em D. Quijote. Há uma fronteira sinuosa, aparentemente muito mal definida, que une o real ao imaginário e parece progenitora da satisfação. O sonho, por si só, afigura-se-me qual impotente se desprovido de ligação com o concreto. É necessária uma ponte, um elo, ainda que sob a forma da esperança, do “irá acontecer”. De outra forma, o prático rapidamente esmaga o imaginado, gerando desalento e vergonha. Isso, é claro, em mentes saudáveis. Por outro lado, a realidade será sempre débil porquanto insuficiente: necessita, também, de um amplificador, algo que embeleze e tonifique a crueza do concreto. E isso, ainda que de forma sutil, não é senão fantasiar o real. Por isso intriga-me até que ponto D. Quijote não viveu o que sonhou, ou até que ponto viveu efetivamente. Louco ou mestre? Falta-me a resposta…

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A repressão do subconsciente

É interessante notar como a repressão do subconsciente, ou de uma esfera talvez autônoma do próprio consciente, parece necessária para que a realidade se não torne insuportável. Primeiramente, pela repugnância inata ao aleatório e irracional. Depois, pela necessidade de unidade comportamental e psicológica. O conflitante, a dualidade, a incerteza são quase intoleráveis à natureza humana, portanto uma escolha é forçosa: uma escolha consciente, que envolve um esforço ativo e não se resume senão na negação intencional de uma face da realidade. Assim, parece necessária a falsificação da vida em prol do prático. O caminho alternativo é assustador. Negar o confronto, demais, é um belo truque para não perder…

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Um animal inadaptado [2]

Forçado a esperar numa fila, sem nada para ler, aproveito o momento em divertida atividade: arriscar uma lista das coisas que mais detesto. Vamos lá: (1) dissimulação, (2) burocracia, (3) demagogismo, (4) grupos de pessoas, (5) marketing, (6) expansividade, (7) ruído de vozes humanas, (8) conversação fútil… Listo e tenho uma ideia. O sorriso é imediato. Novamente, percebo-me um animal inadaptado. Considero, talvez, que minha existência seja um enigma evolucionista. Possuo incontáveis manifestações contrárias ao meio, de forma que arrisco minha própria natureza ser o retrato da inadaptação. Em mim, o intro e o extra relacionam-se em hostilidade, repelem-se de forma total sem que haja qualquer conciliação possível. Nego, recuso-me deliberadamente a integrar o meio, ainda que falhe e seja perseguido de forma insuportável. Lembro-me das palavras de Thoreau: “Wherever a man goes, men will pursue and paw him with their dirty institutions, and, if they can, constrain him to belong to their desperate odd-fellow society”. Oh, vida irritante! convenções insuportáveis! falatório estúpido!… Adeus, nota, até você causa-me fastio.

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Desejo: câncer da psique humana

É possível encontrar justificativas racionais para negar as soluções propostas pelos estoicos, pelos budistas, por Schopenhauer e tantos outros. Mas há uma verdade universal, presente também na filosofia cristã, referente ao desejo: é ele a praga, o câncer da psique humana, a fonte interminável de frustrações. E se, após cuidadosa análise psicológica, decidimos arrancá-lo pela raiz, desarraigando cada uma de nossas esperanças a enxadadas, livramo-nos de uma carga imensa, maligna e prejudicial. O problema é que o ser humano vive de sonhos, suporta a realidade na esperança de um futuro melhor. Exterminá-la, pois, é fazer com que a vida perca o brilho, é dar linha à indiferença, é negar a própria natureza, é automutilação. Pois bem: parece ser esse o caminho da paz.

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