A “intuição” de Jung

De todas as funções psicológicas fundamentais junguianas, a “intuição” é a mais interessante e desafiadora para aqueles que buscam compreendê-las em profundidade. O próprio indivíduo no qual este mecanismo perceptivo apresenta-se acentuado, caso busque interpretá-lo, ver-se-á em grande dificuldade, posto que interpretá-lo seria em suma racionalizá-lo, e não se racionaliza o irracional. Demais, se comparamo-lo com a outra função irracional segundo a classificação de Jung, a “sensação”, esta parece sem dúvida mais compreensível e menos abstrusa para aqueles que a não possuem saliente, porquanto ativada através de estímulos mais facilmente visíveis e palpáveis. Como a “sensação”, é a “intuição” espontânea; mas embora, como diz Jung, seja uma faculdade exclusivamente perceptiva, trabalhando em conjunto com as funções de julgamento induz um parecer daquilo que percebe. Sai este, portanto, automático e calcado no inexplicável. O que sobretudo impressiona é o sair frequentemente carregado de certeza, uma certeza que desafia a lógica, posto calcada numa percepção irracional. E ver que esse mecanismo prova-se eficaz repetidas vezes, prova-se confiável a ponto de não somente rivalizar, mas invalidar conclusões alcançadas por outras faculdades — faculdades aparentemente mais lógicas — naqueles que a possuem pronunciada. Notável…

O mecanismo psicológico precursor das desilusões…

O mecanismo psicológico precursor das desilusões é uma das faculdades mentais mais interessantes que se tem notícia. Manifesta-se ele como uma necessidade, uma tendência natural inconsciente de projetar idealizações em entes e situações reais. Nas mentes que o experimentam, toda a atividade mental consciente parece propensa a descolar-se do concreto e mesclar-se espontaneamente com tonalidades subjetivas e fantasiosas, criando como uma realidade paralela em que a experiência é intensificada e apresenta-se em aspecto ideal. Freud, é claro, classificou como doença mental o pouco que entendeu deste mecanismo. Mas se, por um lado, concorre ele a acentuar, senão produzir futuros contrastes desagradáveis entre expectativa e realidade, convém notar que a criatividade é inteiramente dependente desta capacidade de atribuir qualidades fantásticas à experiência concreta. Desde o poeta que idealiza a mulher amada ao engenheiro que cria em mente o impossível, todos eles têm a inventividade, e portanto o próprio distintivo, originária desta mesmíssima faculdade mental.

A abordagem junguiana para a interpretação de sonhos…

Assim como em todo o resto, a abordagem junguiana para a interpretação de sonhos é muito mais interessante do que geralmente se faz em psicanálise. Partindo do mesmo e necessário princípio de que se há de encontrar um sentido para eles, mas não se restringindo a uma interpretação exclusivamente causal, Jung se abre a um horizonte infinito de possibilidades. Um analista atento rapidamente se impressiona com a disparidade entre os sonhos de um mesmo indivíduo, desde a lucidez de manifestação ao conteúdo quase sempre discrepante, ora calcado no presente, ora no passado, ora em fantasias e por aí vai. Há sonhos em que a linearidade facilita a compreensão, noutros há uma estranha sobreposição de cenas desconexas, senão imagens abstratas e ausência completa de nexo lógico. Não é raro haver a certeza sensitiva de que ocorreu tal ou tal evento num sonho, sem que dele se tenha retido elementos pictóricos; como ocorre também a memória de diálogos e discursos soltos, em manifestações que desafiam o raciocínio. Isso para não falar em sonhos que se ligam espantosamente a eventos concretizados no futuro. Jung, notando toda essa complexidade, acerta em abordar cada sonho individualmente e repugnar a tentativa de encaixotá-los todos num “manual de interpretações”. É verdade que o psicólogo, agindo desta forma, o mais das vezes encontra-se no escuro; mas tal humildade, para não dizer coragem, ocasionalmente pode recompensar.

Os escravos do passado

Se causa estranhamento, e um estranhamento legítimo, uma inteligência como Schopenhauer apegar-se a uma filosofia concebida aos trinta e passar o resto a vida a sustentá-la, que dizer de Freud, velho e de cabeça branca, a continuar limitando a psicologia humana à “sexualidade reprimida” e a traumas infantis? É o fim! Parece uma vida inteira desperdiçada, uma vida inteira em que o espírito não foi capaz de contemplar possibilidades superiores. Ou então evidência de um orgulho invencível, que tratou de sabotar-se estrangulando todo e qualquer lampejo que pusesse em risco as conclusões de anos precedentes. Como é possível, ou melhor, como não rir ao imaginar Freud, já no fim da vida, a despejar a mesma ladainha sobre um paciente igualmente velho? Dois homens, já com um caixão aberto a esperá-los, a vasculhar episódios da infância para reputá-los agentes de ações atuais. É verdadeiramente uma lástima que Voltaire tenha vivido antes de Freud.