Marcha, de Cecília Meireles

Um belo poema de Cecília Meireles:

As ordens da madrugada
romperam por sôbre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas do sono
com a idea do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando atôa,
como um número que se arma
e em seguida se esborôa,
— e caír no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saüdade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.

Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de mêdo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento…
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

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Vanitas, de Olavo Bilac

Outro belo soneto de Olavo Bilac:

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,
Trabalha. A alma lhe sáe da penna, allucinada,
E enche-lhe, a palpitar, a estrophe illuminada
De gritos de triumpho e gritos de agonia.

Prende a idéa fugaz ; doma a rima bravia;
Trabalha… E a obra, por fim, resplandece acabada:
«Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada!
Filha do meu trabalho! ergue-te á luz do dia!

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,
Arranquei-te da Vida ao adyto profundo,
Arranquei-te do Amor á mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives!» E o Poeta
Pensa que vae cahir, exhausto, ao pé de um mundo,
E cáe — vaidade humana! — ao pé do um grão de areia…

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Trem de ferro, de Manuel Bandeira

Uma aula de ritmo e expressividade:

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria o que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa fumaça
corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo na fornalha
que preciso
Muito força
Muita força
Muita força

Aô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De inagaseira
Debruçada
No riacho
Que vontade de cantar

Aô…
Quando me prendera
No canaviá
Cada pé de cana
Era um ofício
Aô…
Menina bonita
Do vestido verde
Me da sua boca
Pra mata minha sede
Aô…
Vou mimbara vou mimbara
Não gosto daqui
Nasci no Sertão
Sou de Ouricirri

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente.

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A vida assim nos afeiçoa, de Manuel Bandeira

Um dos belos poemas de Manuel Bandeira:

Se fosse dor tudo na vida,
Seria a morte o grande bem.
Libertadora apetecida,
A alma dir-lhe-ia, ansiosa: — “Vem!

Quer para a bem-aventurança
Leves de um mundo espiritual
A minha essência, onde a esperança
Pôs o seu hálito vital;

Quer no mistério que te esconde,
Tu sejas, tão-somente, o fim:
— Olvido, imperturbável, onde
Não restará nada de mim!”

Mas horas há que marcam fundo…
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo,
Cuja saudade extingue a voz.

Ao nosso ouvido, embaladora,
A ama de todos os mortais,
A esperança prometedora,
Segreda coisas irreais.

E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper:
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel.

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