Corrupta configuração, decerto…

Corrupta configuração, decerto…
Enseada a toda espécie de assassino,
Que assusta quando, à luz de indício incerto,
Parece, em brando olhar, sorrir ao tino…

E o juízo a um pé de ter-se categórico
Lhe vê que a fixação nos quintos míngua,
Em objeção enxerga um não pictórico,
Absurdo a replicar na própria língua…

Vai, pois, Mistério, exibe-te a virtude,
Faz colapsar o raciocínio fraco,
Faz o que bem quiseres, vai, ilude…

Torna a asserção humana vão pitaco,
Causa total na empáfia um desmantelo,
Mostra e rebuça, a ti subjuga o belo…

(Este poema está disponível em Versos)

____________

Leia mais:

A construção de um monumento lógico

Sorrio percebendo-me a repugnância por sistemas filosóficos. A construção de um monumento lógico; o enquadramento da realidade, em todas as suas infinitas nuances, numa sistemática racional: nada disso desperta-me o interesse, tudo isso parece-me proveniente de um erro primário. A construção de um sistema filosófico exige a mutilação da realidade: sua aplicabilidade no mundo real, na vida prática, pois, é quase nula. Que sobra além do sistema? Há algo capaz de impactar uma conduta, alterar uma relação entre indivíduo e meio, moldar uma postura real? É o que me pergunto ao julgar a obra de um filósofo, e sorrio ao ver-me a incapacidade de embarcar no delírio e reputar como maravilhoso aquilo aplicável somente no mundo das abstrações. A filosofia que se preze deve ser capaz de enxergar a cadeia, o hospício, o mosteiro e a casa de prostituição.

____________

Leia mais:

Dostoiévski e a técnica artística

Proverbiais são as críticas ao estilo de Dostoiévski. Não somente os russos, como também desconhecedores do idioma costumam dizer de Dostoiévski prolixo, impreciso e muitas outras coisas, a taxar-lhe os textos como mal escritos ou mal acabados. Destes, entretanto, é maioria os que reconhecem o imenso valor da obra de Dostoiévski, o que nos expõe uma questão interessante. Hemingway, em A Moveable Feast, coloca-a nos seguintes termos: “How can a man write so badly, so unbelievably badly, and make you feel so deeply?” A resposta é simples: o que há na obra de Dostoiévski ultrapassa a técnica artística. Sobre esta, guardo-me as inúmeras ressalvas ao so unbelievably badly para quando for capaz de ler em russo — cautela, aliás, que faltou a Hemingway. Mas a questão expõe outra ainda mais interessante: qual é o objetivo da arte? como a grande arte se manifesta? E enganam-se os críticos que julgam o essencial da arte residir na técnica. A grande arte destaca-se, primariamente, pela potência de expressão, pelo efeito que é capaz de gerar. E o estilo, a técnica, a forma são acessórios que contribuem para a criação desse efeito, muitas vezes amplificando a expressividade da obra artística. Intenções diferentes, técnicas diferentes… E distinguindo o essencial, é possível entender como autores de estilos tão díspares como Hemingway e Dostoiévski conseguem, ambos, entregar-nos obras de enorme valor.

____________

Leia mais:

A consciência evoluída tem de portar-se como uma empresa

É curioso notar o movimento da psicologia das massas. Para além da noção utilitária do próprio valor, agora, a consciência evoluída tem de portar-se como uma empresa, isto é, não somente aceitá-los de bom grado, como ansiar por feedbacks. Escuta, ó alma, peça-os e agradeça, sempre! E as relações — todas elas! — dotadas de um caráter comercial. Quer dizer: o ser humano passa a existir em função da “satisfação dos clientes”. De sorriso esticado na face, mostra-lhe a maturidade quando se esforça por agradar. Sempre os outros, sempre o extra, sempre o grupo como critérios soberanos de validação dos próprios atos. E o “senso comum” forçando a universalidade da submissão… Oh, espécie! cujos resquícios da dignidade parecem subordinados a uma migração voluntária de indivíduos de volta à floresta…

____________

Leia mais: