Livro do desassossego, de Fernando Pessoa

Releio esse formidável Livro do desassossego e sinto-me forçado a brindá-lo com algumas palavras. Impressiona não somente a originalidade, mas a capacidade ímpar do poeta em sustentar a atmosfera que lhe é característica. Alternando descrições e pensamentos, revelando todo um universo interior de um banalíssimo “ajudante de guarda-livros” lisboeta, são trezentas e cinquenta páginas harmônicas, ritmadas, que expressam um estado mental meditativo e uma percepção refinadíssima. O poeta consegue ser agudo, potente e por vezes cruel sem parecê-lo, numa prosa tão bela que blinda-se contra qualquer sentimento repulsivo e afaga o espírito do leitor. Grande arte, grande filosofia, páginas imortais. Viva, Pessoa!

Quando se perde a tradição

De Pessoa:

Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.

A filosofia é medíocre quando se rebaixa a um concurso de retórica

A filosofia é medíocre quando se rebaixa a um concurso de retórica. Perde o distintivo e passa a ser rasa como um debate político. O filósofo abre mão da sinceridade pela eloquência, gasta-lhe o espírito no vilíssimo convencer. Como enfastia as vazias discussões sobre os “sistemas”, sobre os “métodos”, sobre os “erros” alheios, quando o esforço seria muito melhor empregado, até por uma demonstração de respeito à filosofia, em individualizar e fortalecer a expressividade da própria percepção.

Há seres humanos adaptados e inadaptados

Há seres humanos adaptados e inadaptados, satisfeitos e inconformados, aqueles que gostam da vida e aqueles que acham-na um incômodo. Os que vivem, os que pensam; conforto, desconforto; esperança, desilusão. Pode haver, no ser humano, ambas as dimensões; pode ser que as não haja. Estranha observar o consenso velado de que haja um “normal”. A verdadeira pergunta é: como conduzir as diferentes e naturalíssimas disposições mentais? Respondendo-a, notaremos que se extrai valor do equilíbrio e do caos.