O conto que Kafka não escreveu

Um banalíssimo sujeito mantém, por quinze anos, o mesmo número de celular. Construiu, assim, uma rede de contatos pessoais e profissionais extensa. É, sobretudo, dependente deste número. Eis que, subitamente, passa a receber entre 100 e 150 ligações diárias em horário comercial de empresas tentando vendê-lo qualquer sorte de produto financeiro. Entre 100 e 150 ligações de 8h às 18h: fazendo a matemática de padaria, o número equivale a aproximadamente uma chamada a cada cinco minutos. O sujeito, aliás, o jovem misantropo é forçado a atendê-las todas, posto haver a possibilidade de, entre os números desconhecidos, encontrar-se um possível cliente. O número é, também, um número de trabalho. De cinco em cinco minutos, o telefone toca. O jovem atende com grosseria, dispensa a empresa invasiva irritadíssimo por ser acionado para ouvir sobre produtos que não tem o menor interesse, sem ter jamais concedido abertura para que tais ligações fossem realizadas. Então se lhe torna a rotina um inferno. Não consegue concentrar-se em nada, o telefone não para de tocar. Tem de atender, passa a ser rude na primeira palavra, destrata contatos profissionais por engano. “O senhor Luciano Duarte, por favor…”, “Por gentileza o senhor Luciano…”, “Neste número eu consigo falar com o senhor Luciano?…”. Oh, Kafka, irmão, ajuda esse teu personagem!

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O gosto do verbo

É verdadeiramente impressionante o ser humano gostar de falar, falar, falar, quando o silêncio é infinitamente mais prazeroso. Relacionar-se ou, em outras palavras, envolver-se numa irritante e interminável guerra de vaidades… Conhecer gente: que é isso, meu Deus do céu? Tempo, esse bem finito, despendido de maneira, sobretudo, perniciosa. Mas há pior: o verbo, o tremer das cordas vocais quase nunca é fruto de uma motivação nobre. Má intenção, resultados desagradáveis… e continuamos a colecionar inconvenientes…

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O colapso da democracia

Divirto-me, por alguns minutos, imaginando hipóteses para o colapso natural da democracia. O colapso é natural porque a democracia é naturalmente falha e incompetente. Vamos ver: a primeira hipótese seria algum tipo de revolução. Difícil… Revoluções fazem barulho, o povo é o senhor do barulho, e dificilmente o povo apoiaria uma revolução para a abdicação do próprio poder. O povo jamais diria: “Realmente, sou um imbecil, e o mundo seria melhor se eu deixasse de me meter em questões que não tenho a menor capacidade de avaliar”. Por isso, ainda que regiões democráticas se vissem na miséria, dificilmente uma solução não democrática seria aprovada pela “vontade soberana”. Segunda hipótese: a subjugação pela força. Países não democráticos submeteriam os menos desenvolvidos e passariam a controlá-los politicamente. Muito, muito difícil se feito a descoberto: culminaria em guerra, mortes, revolta, etc. etc. Uma guerra parece-me, sobretudo, pouco inteligente. Há uma terceira hipótese, ainda considerando a subjugação pela força, porém de forma velada. Quer dizer: pela força econômica, os mais desenvolvidos e não democráticos solapariam a soberania dos atrasados. Parece-me perfeitamente possível, posto os infinitos e hipotéticos meios de execução. Tapear o povo seria tarefa facílima na era do marketing. Difícil, talvez, seria subjugar o ego dos representantes da vontade suprema. Mas para isso há capital, há tecnologia da informação, há engenharia de intimidação. Engraçado: ainda que dispensemos entrar em teorias da conspiração, a conjeturar conluios entre a elite global, resta evidentíssimo um balão inflando, inflando, inflando, e é inevitável não divertir-se imaginando-o a estourar.

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Torna-me humano, ó noite!

Versos de Fernando Pessoa:

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

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