O meu jornal

Sonhei ter criado um jornal. A cena foi a seguinte: em redor de uma mesa, minha equipe, empolgadíssima, pôs-se a discutir a linha editorial do periódico, quando os ânimos se exaltaram. Combateríamos as injustiças do mundo: claro, claro! E a representatividade seria pauta obrigatória! De quem, onde? Eis o que os gritos tentavam expressar. Cada um berrava a própria opinião. Eu via-me calado, receoso de dizer o que pensava — mas pensava: “Oh, magnífica bobagem!”; e, óbvio, dizê-lo seria minha ruína, visto algumas opiniões serem proibidas socialmente… —Então, em plena guerra verbal, quando tudo aparentou irresolúvel, solicitaram-me a palavra de dono do jornal. Súbito, tendo de expressar em poucas palavras a minha opinião sobre qual classe era a mais injustiçada de todos os tempos, sobre quais matizes julgava mais nobres para o jornal, e cuidando não ofender a equipe que necessitava motivada, respondi: “Vamos fazer o seguinte. Todas as pautas são muito importantes” — e conduzi, todos eles, a um crematório. Solicitei uma entrevista com o operador de forno; pedi-lhe: “Explica pra gente, amigo, em que consiste o seu trabalho”. Naturalmente, meu jornal jamais publicou uma primeira edição.

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O ser humano vive em estado vegetativo

Creio ter sido Hegel quem disse que “aprende-se da história que o homem nunca aprende com ela”. Verdade inquestionável. Porém apenas o sintoma de um problema maior. O ser humano vive em estado vegetativo, ainda que, por vezes, aparente o contrário. Não é somente as lições da história que ele se mostra incapaz de apreender, mas a própria realidade. Racionalmente, viver parece uma impossibilidade. Se o ser humano raciocinasse e usasse do juízo que cuida dispor para assimilar a própria existência, punha-se imediatamente no meio-fio a chorar. Mas não é o que acontece. É necessário que um amigo próximo, que um familiar morra para que o sujeito desperte do estado vegetativo e raciocine algo como “poderia ter sido eu”. Entretanto, o surto é fugaz: a consciência desperta e, imediatamente depois, põe-se mais uma vez em sono pesado. Então o ser torna ao estado que lhe é habitual, em evidência do caráter vicioso do próprio juízo. É incrível! Parece ser esse um mecanismo psicológico adaptativo, quer dizer, se não mergulhado em profunda inconsciência, quem moveria uma única palha? Construiriam o Titanic, soubessem-lhe o fim? E da vida o fim está claríssimo… Mas já estamos divagando. “Aprende-se da história que o homem não aprende com ela”: o homem, o ser que ignora tudo, o cego sorridente. E parece a mesma programação mental que exige a dormência justificar desde a estupidez individual até a tolice coletiva de um mundo que, há mais de meio século, não enfrenta uma grande guerra…

Jude, o obscuro, de Thomas Hardy

Jude, o obscuro (também traduzido como Judas, o obscuro) é o último romance de Thomas Hardy. Recebido em hostilidade pela crítica, há quem diga que os epítetos partindo do “sujo” ao “imoral” justificaram que Hardy vivesse-lhe os pouco mais de trinta anos restantes sem publicar um novo romance. O fato é que Hardy abandonou o gênero exatamente após a publicação de uma obra-prima. Quanto às críticas, Swift bem definiu: “When a true genius appears in the world, you may know him by this sign, that the dunces are all in confederacy against him”. E não é possível hoje, distanciados das mesquinhas conveniências da sociedade vitoriana, não classificar a obra como genial. Genial e indutora da revolta: Jude, o obscuro expõe as entranhas desta organização repugnante denominada sociedade. Jude, o protagonista, enfrenta ambiente limitador da liberdade, opressivo contra qualquer manifestação do individual. As massas, naturalmente, são apresentadas como desprezíveis, hostis frente ao diverso, incapazes de aceitar o que lhes não replique a mediocridade. A organização social calcada em convenções, quase sempre estúpidas, antinaturais e indutoras da injustiça; o autoritarismo figurando-lhe como essência e a mensagem claríssima: a sociedade é uma máquina imunda. Difícil não ler a obra e julgar que o conveniente é essencialmente indigno. Jude, ainda novo, almeja a alta cultura, a despeito de suas limitadíssimas possibilidades. Alimenta, por anos, um sonho, quando passam a vê-lo, no vilarejo onde reside, como um jovem promissor. Então lhe armam uma cilada. Uma garota o seduz, desejosa de ascensão: arrasta-o para sua própria casa, submetendo-o ao constrangimento auxiliada do pai. Jude é forçado a julgar que o casamento é exigência da honra e casa-se, ainda que não dispondo de condições para fazê-lo. A realidade muda bruscamente: Jude vê-lhe, pois, o horizonte crassamente limitado, com todos os seus sonhos baldados em razão de uma necessidade compulsória de dinheiro. Em pouco, o casamento mostra-lhe a face perversa: a esposa, insatisfeita, larga-o e muda de país, não o desobrigando, porém, do compromisso eterno que firmou diante do padre, forçado pelas convenções. Então a narrativa avança e Jude, apaixonando-se por sua prima, sente na carne a maldição de nascer pertencente à espécie humana. É ler e sentir pulsar a revolta. Depreciaram a construção das personagens de Hardy, julgando-as reféns de um determinismo biológico; disseram de várias cenas imorais, absurdas e muitas outras coisas. Mas aqui está a verdade: a narrativa de Hardy convence, as personagens são vivas e reais e o enredo de Jude, o obscuro é conduzido com extrema habilidade. O tempo já parece evidenciar quão virtuosas eram as convenções da sociedade vitoriana. E parece, também, evidenciar isto: Jude, o obscuro é um romance imortal.

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O “importante” constantemente muda de face

Os anos correm e o “importante” constantemente muda de face. O imprescindível, no passado, torna-se irrelevante. E a vida parece operar um lento movimento de redução da realidade, como que se atendo ao essencial. Se avultam os anos, parece escassear o que antes aparentava abundância. Possibilidades, sonhos, relações… tudo parece dissipar-se lentamente, evidenciando talvez o que fica, ou talvez que a realidade está condenada à volatização…

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