Mil vezes perdão

Perdão, mil vezes perdão, mas custo a aceitar… Quase todos os 154 sonetos de Shakespeare sobre o mesmo tema, quase toda a poesia lírica de Camões entoando o mesmo lamento… Como é possível? Digo e penso-me um bárbaro, amputado de minha dimensão humana. Mas não consigo engolir. Paciência… Não consigo e não há o que fazer. Eis a verdade: há uma espécie de sofrimento que jamais me arrancou um único suspiro, não me desperta a compaixão e por vezes me provoca o riso. Ó indolência! Ó crueldade!… acabarei muito, muito mal convosco…

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Matizes da vaidade

Que é vaidade? ou, antes: como ela se manifesta? A impressão imediata da vaidade em tempos modernos remete ao requinte em vestir-se, em portar-se. Seria isso condenável? Não creio. Os efeitos do esmero em vestir-se, assim como os de adornar a própria casa, ou cultivar um belo jardim, são positivos. O ser humano respeita o que é belo, inspira-se, quer ser belo igualmente: a beleza, pois, ramifica. Portanto, vejo a vaidade, neste matiz, como positiva. Entretanto, há nessa qualidade uma manifestação destrutiva associada à imodéstia, ao brio, à presunção. Há na psique do homem moderno um impulso terrível em prol da afirmação do próprio valor. Uma vontade velada, conquanto selvagem, que se manifesta no apego às próprias ideias, na necessidade de angariar respeito, concordância, e cuja substância resume-se em imaturidade. Alguém que se leva a sério falta-lhe a consciência. Como olhar sinceramente ao espelho e não rir?…

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A guerra contra a falsidade

O despertar de minha consciência deveu-se à percepção da falsidade no mundo. Despertando, o fantasma decidiu travar combate. Oh, guerra inútil, que tanto me atribulou!… Condenar a falsidade é ver-se rapidamente tomado do nojo para com as pessoas, é afastar-se, gradativamente, de todos, é tornar-se um misantropo. E, sempre em silêncio, transformei-me a mente em um grande tribunal. Repugnando-me a própria essência, avesso à simpatia, não poderia vivenciar fim diferente… Há uma dose de falsidade sem a qual o mundo não existe. As relações, se não estúpidas e superficiais, valem-se da dissimulação. E o interesse será sempre o principal motor das ações humanas. É aceitar, saber lidar, ou encontrar, em pouco, a existência insuportável.

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Uma feira de personagens culturais

Trecho de Luiz Felipe Pondé em seu Ensaio Teologia do niilismo – A inteligência do mal, escrito originalmente para a revista russa Dostoievski y mirovaia kultura e disponível em seu Do pensamento no deserto:

Religião e teologia não são áreas do conhecimento com o mesmo valor epistêmico que biologia ou sociologia. Evidentemente que livros continuam a serem escritos em ambas as áreas, mas livros não são sinais claros de valor epistêmico. Mesmo a filosofia da religião perdeu muito com a chamada morte da metafísica. O foco dissolutivo deste fato se encontra na inconsistência de qualquer forma de conhecimento que não relacione de modo produtivo a dedução racional com a indução empírica. É evidente a relação com a ciência moderna como referencial. Mesmo que muitos intelectuais “brinquem” de pós-modernos afirmando que tudo é “simulacros ou narrativas”, aviões voam e transplantes de órgãos acontecem seguindo as “convenções” da física e da biologia. Mesmo que descubramos que as mesas são constituídas de “espaços vazios”, continuaremos a colocar pratos em cima dela sem que caiam “no vazio quântico”. Além dessas “brincadeiras quânticas”, o fato é que a insegurança das construções teológicas (fruto da dúvida cética científica) é obrigada a enfrentar não só o fracasso da metafísica diante do tribunal da razão sensorialmente sustentada (drama mais ligado às ciências duras ou naturais), como também a redescoberta da sofística, agora encarnada na antropologia cultural (realidade mais típica das ciências humanas): “de qual deus você está falando?” Podem existir quase tantas teologias quanto restaurantes étnicos. É como se com a morte da metafísica, o céu tivesse ficado vazio, e sobrou apenas uma feira de personagens culturais.

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