A ausência de uma concepção mais nobre

Penso no grosso da literatura do século XX. O ser humano é um animal multifacetado, ambíguo, sujeito a manifestações diversas e contraditórias. Nele, o selvagem mistura-se ao sublime em proporções variáveis — e, geralmente, desbalanceadas. Um autor, pois, não erra quando o retrata como escravo do desejo, fantoche da vontade. E acerta em cheio quando explora a irracionalidade e o avesso à moral. Entretanto, uma pausa. Há no homem a manifestação do belo, e amputada é a obra que se exima de explorá-la. Dar vida ao espécime humano mais arcaico e animalesco é tarefa, digamos, menos difícil que ousar penetrar a mente do modelo que se eleva acima do banal. Por isso, o autor será menor caso fuja da tarefa de conceber o raro. Onde está o nobre? Inexistente? É o que parece dizer grande parte da literatura incapaz de engendrá-lo ainda que, como Swift, sob a forma de cavalos…

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A explosão de um conflito interior insuportável

Contraposta à representação de fenômenos externos, percebo a grande arte como a explosão de um conflito interior insuportável. Quer dizer: o artista imprime aquilo que o atormenta ou o objeto de seu desejo irreplegível. Obsessões psicológicas, sentimentos que o atacam violentamente… a grande arte é consequência de uma guerra interior. Exatamente por isso, é raro que se apresente como agradável. Intensidade nada tem que ver com paz…

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Trem de ferro, de Manuel Bandeira

Uma aula de ritmo e expressividade:

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria o que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa fumaça
corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo na fornalha
que preciso
Muito força
Muita força
Muita força

Aô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De inagaseira
Debruçada
No riacho
Que vontade de cantar

Aô…
Quando me prendera
No canaviá
Cada pé de cana
Era um ofício
Aô…
Menina bonita
Do vestido verde
Me da sua boca
Pra mata minha sede
Aô…
Vou mimbara vou mimbara
Não gosto daqui
Nasci no Sertão
Sou de Ouricirri

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente.

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Um animal inadaptado [2]

Forçado a esperar numa fila, sem nada para ler, aproveito o momento em divertida atividade: arriscar uma lista das coisas que mais detesto. Vamos lá: (1) dissimulação, (2) burocracia, (3) demagogismo, (4) grupos de pessoas, (5) marketing, (6) expansividade, (7) ruído de vozes humanas, (8) conversação fútil… Listo e tenho uma ideia. O sorriso é imediato. Novamente, percebo-me um animal inadaptado. Considero, talvez, que minha existência seja um enigma evolucionista. Possuo incontáveis manifestações contrárias ao meio, de forma que arrisco minha própria natureza ser o retrato da inadaptação. Em mim, o intro e o extra relacionam-se em hostilidade, repelem-se de forma total sem que haja qualquer conciliação possível. Nego, recuso-me deliberadamente a integrar o meio, ainda que falhe e seja perseguido de forma insuportável. Lembro-me das palavras de Thoreau: “Wherever a man goes, men will pursue and paw him with their dirty institutions, and, if they can, constrain him to belong to their desperate odd-fellow society”. Oh, vida irritante! convenções insuportáveis! falatório estúpido!… Adeus, nota, até você causa-me fastio.

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