O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer

O mundo como vontade e representação… Penso nessa obra sempre em desalento, porquanto ela tratou de atacar violentamente minha já tíbia dimensão humana. A história é antiga. Lembro-me de que, assim que me pus a estudar filosofia, passou a ser recorrente o nome de Schopenhauer. De início, busquei estudar a história da filosofia, em perspectiva abrangente, a tornar possível que eu estruturasse um plano de estudos de longo prazo para, assim, iniciar-me o contato direto com as obras. Seja qual fosse a fonte, lá estava o autor direcionando palavras amargas a Schopenhauer, associando-o a um pessimismo radical, apontando-lhe o viés nocivo da obra. Pouco depois, li um ou dois livros de Schopenhauer: vi inteligência, mas nada de tão calamitoso; deixei-o de lado e prossegui nos meus estudos. Então continuei a ouvir Schopenhauer, sempre Schopenhauer, quando me lembro de que li um ensaio excelente de Thomas Mann, autor que tenho em alta estima. Mann, no ensaio, explora e externa a influência de Schopenhauer na própria obra, agradecendo por ter lido o filósofo no início da carreira. Entretanto, classifica a obra de Schopenhauer — cujo coração é O mundo como vontade e representação — como filosofia para “jovens”, dizendo, em seguida, Schopenhauer ter trabalhado até o final de seus dias para justificar, com “sinistra fidelidade”, uma filosofia juvenil. Depois desse trecho perdi completamente o interesse por Schopenhauer, ignorei tudo o que o próprio Thomas Mann havia dito a respeito das marcas profundas que Schopenhauer gravou-lhe para o resto da vida. Quer dizer: eu, aos vinte e poucos anos, achava-me imune a qualquer tipo de “filosofia para jovens”, imune e desinteressado. Então o tempo correu. Mais à frente, Nietzsche, que tantas vezes grafou o nome do ilustre compatriota. Antes de Nietzsche, e mesmo antes de estudar filosofia, Machado de Assis, cuja obra prendeu-me e encantou-me por anos a fio. Quando passo a estudar Machado de Assis pela crítica, o susto: influência notória de Schopenhauer. Então me decido: lerei este tal O mundo como vontade e representação. Hoje, é difícil encontrar palavras para descrever esse livro e seus reflexos em minha vida. Recordo Thomas Mann associar Schopenhauer à busca pela morte em vida: talvez seja uma boa definição para a obra. O que posso dizer é que, para mim, foi leitura sem volta. Há evidente sabedoria no livro, que não é senão uma extensa meditação. Mas essa obra, se lida como se deve ler qualquer obra, com sinceridade e dando crédito ao autor, é um autêntico veneno, e talvez o mais potente. Aí está: li O mundo como vontade e representação e tenho estima, admiração por Schopenhauer; mas Schopenhauer, terminantemente, não é autor para mim, um indiferente nato, misantropo incurável, várias vezes acusado de insensível e com ceticismo correndo pelas veias. Schopenhauer cuidou atrofiar-me ainda mais a dimensão humana, exterminou-me as ilusões, contaminou-me para sempre. Hoje em dia é moda ter “opiniões”, “convicções”, ler um livro e dizer “concordo” ou “não concordo”. Quão fácil seria minha vida fosse-me a mente adepta a tal simplificação… Leria O mundo como vontade e representação e diria, com dedo em riste: não concordo! Terminei a leitura, pois, e julguei nada tivesse ocorrido. Segui meus estudos, toquei adiante. Estava imerso em alguns autores franceses. Os meses passaram, e senti-me imune à filosofia exposta no livro. Quanta ingenuidade… Precisou correr um ano para que eu percebesse ecoando em minha mente, todos os dias, as palavras desse livro infesto: “felicidade é não sofrer”, “o desejo é fonte inesgotável de sofrimento”, “negar o desejo”, “negar a vida”… E percebi-me impregnado até a unha de indiferença, alheio a tudo o que um dia valorizei. Julguei-me os atos e vi que nada mais havia que me fosse caro como outrora, tornei-me um túmulo, distante de todos, inclusive os mais próximos. Eu, que nunca fui fã de mim mesmo, que sempre me julguei nocivo, pernicioso, menos humano que os demais; eu, que sempre fui contra os meus próprios instintos, tendo-me em péssima estima, medindo palavras o tempo inteiro a não frustrar as pessoas, vi robustecer e solidificar-me quiçá para sempre o lado mais sombrio, mais detestável de minha personalidade. Tudo contra minha própria vontade, imposto, impelido por esse maldito O mundo como vontade e representação que, mesmo que eu tente negar, talvez tenha sido a leitura mais impactante de toda a minha vida.

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Preceito simplíssimo

Vejo-me a produção avultando, a obra destes dias tomando corpo e, sistematicamente, os progressos aparecendo. Foram-se já 25 mil palavras que saíram leves, — por favor, não me lembrem da revisão… — de setecentas a mil por sessão de trabalho, com dias bons — têm sido maioria — somando duas sessões diárias, sem maiores problemas com o enredo traçado, os personagens tomando dinamismo, tudo correndo muito bem… Vejo que tudo isso é decorrente de um preceito simplíssimo: sentar e escrever. Se perco a manhã, paciência, mas a noite jamais falhará. E se me vejo indisposto, novamente paciência, mas tenho de escrever, porquanto escrever é-me prioridade inarredável. Assim consigo progredir, encontro-me em pouco mais de vinte dias com quase metade de um volume escrito — sei, sei, ainda não revisado… — e tudo parece caminhar cada vez melhor. Não sei em que nível a experiência me porá a produtividade em alguns anos, mas, por ora, sinto-me com manifesta satisfação.

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7 obras excepcionais que estão fora de circulação no Brasil

Não é sem tristeza e despeito que inicio estas linhas, orçando já na primeira frase o que pode ser perdido, senão o que já foi, quando vejo livrarias perdurarem repletas de lixo.

Os culpados? Apontem quem quiserem… a mim é indiferente: há muito que não acredito nem espero justiça no mundo. O homem, bem disse o mestre, já fracassou.

Elencarei aqui, pois, 7 obras excepcionais que estão vergonhosamente fora de circulação no Brasil.

E paciência, amigos, pois o dedo me está carregado de amargor…

1- História da República, de José Maria Bello

Começo por esta História da República, que praticamente não existe. A minha versão, coitada, impressa em 1956, está em estado lamentável de conservação.

Nessa obra José Maria Bello, em escrita lúcida, concisa e penetrante, percorre 65 anos da história brasileira, em intervalo que parte de 1889 a 1954.

Por que a classifico como excepcional?

Primeiramente, pela esmerada forma: o livro está muitíssimo bem escrito e organizado.

Em segundo lugar, pela abrangência: José Maria Bello percorre o período esmiuçando fatores de ordem social, política, econômica e cultural, não apenas apresentando fatos, como é do gosto de alguns historiadores, mas os interpretando, conectando, desenhando um panorama da sociedade e traçando sua evolução no tempo.

Terceiro: pela imparcialidade do autor. Leio na contracapa de minha versão: “O que mais admira no autor, é que, político e militante, contemporâneo de grande parte dos acontecimentos, que descreve, sabe manter-se imparcial e sereno, dando-nos assim uma visão completa de todas as agitações e revoluções que tumultuaram êstes primeiros quarenta anos da República”.

De fato, eu não saberia dizer, mesmo após a leitura, qual a posição política do autor; impressiona-me, inclusive, saber que José Maria Bello foi político e militante.

Mais: segundo meu julgamento, não vejo, em toda a história brasileira, período mais importante que exatamente o abordado na obra (queda do Império e instauração da República) para a compreensão do Brasil recente. Já pelos governantes, já pela sucessão dos fatos, talvez não haja período a ter marcado mais profundamente o caráter da nação — e, ironicamente, talvez não haja período mais ignorado.

Nenhum destes motivos, porém, se compara a este último, que a mim faz com que a obra seja genuinamente uma preciosidade: a proeminência do autor quando em descrevendo o psicológico das principais figuras do período. José Maria Bello faz autênticas pinturas, traça-lhes não só as ações, mas lhes interpreta as motivações, delineia-lhes o caráter e, ainda que diante de personalidades ambíguas, sabe-lhes apontar mérito, valorizá-los o quanto pode, a tentar ser benigno com todos, o que é algo verdadeiramente nobre.

O livro, entretanto, só existe em raríssimas unidades, muitas delas em triste estado — como a minha — e, aparentemente, não há intenção alguma de reimpressão da obra. Uma lástima!

2- Historia geral do Brazil, de Francisco Adolfo de Varnhagen

A vontade, aqui, é de sentar no meio-fio e chorar.

Francisco Adolfo de Varnhagen, distintíssimo Visconde de Porto Seguro, pai e maior expoente da historiografia brasileira, simplesmente, esquecido.

Esta Historia geral do Brazil foi a primeira tentativa sistemática, organizada e que dispôs de recursos abundantes — graças a D. Pedro II — para traçar um panorama histórico da formação da sociedade brasileira.

A seriedade do trabalho e a qualidade da documentação reunida, que custaram a Varnhagen mais de trinta anos de esforço e pesquisa, estão bem evidenciadas no prefácio da segunda edição:

Uma obra desta natureza, em quanto o autor vive e trabalha, nâo chegou ao seu verdadeiro fim; pelo que, de taes obras, nâo se podem fazer estereotypicas sendo os autores vivos. Necessitavamos entretanto, por meio desta ediçâo, alliviar-nos dos grandes cuidados qne nos estava dando a guarda do seu original, sempre receosos de que, por um incendio ou qualquer outro accidente, se perdessem, para o paiz e para o público, os novos fructos recolhidos nos ultimos dezenove annos, — desde 1857, em tantos proximamente como haviamos levado a reunir os elementos para a primeira edição.

Pobre Visconde de Porto Seguro… soubesse a sorte que guardaria o futuro para o trabalho de sua vida…

Creio seja natural que o cidadão comum se não interesse pela própria história, por sua origem, pelas raízes de seu povo, nem por nada que exceda o seu mundinho banal.

Mas aqui, não sendo possível encontrar Varnhagen numa livraria, a questão toma forma acintosa. É uma verdadeira vergonha ver Varnhagen fora de circulação, e mostra ser o Brasil merecedor da relevância cultural nula que dispõe no cenário internacional.

3- História de Dom Pedro II, de Heitor Lyra

Esta obra, já abordada em ocasião anterior, é outra raridade. Talvez a mais rara desta lista, posto haver sebos cobrando até R$ 1.000 pelos três volumes reunidos.

Num país minimamente sério, sabendo-se que o incêndio do Museu Nacional eliminou para sempre grande parte da documentação em que se baseou essa obra, imediatamente seriam tomadas medidas para que lhe houvesse uma reedição ou reimpressão o mais breve possível. O que está em risco, aqui, é um desfalque eterno na história da sociedade brasileira, portanto, o interesse é geral, é uma questão de responsabilidade para com as gerações vindouras e também com o passado.

Entretanto, o Brasil não é um país sério. É um país que, historicamente, avilta as próprias origens de forma mesquinha, indigna e irresponsável.

4- Dificuldades da língua portuguesa, de Manuel Said Ali

Manuel Said Ali foi um enorme intelectual brasileiro. Erudito de primeiríssima linha, conhecedor profundo de grande variedade de línguas e civilizações, partindo do alemão até o grego, latim, sânscrito e sabe-se lá mais quantas, dedicou-se nesta obra a esmiuçar questões escabrosas do nosso idioma.

Este volume Dificuldades da língua portuguesa é interessantíssimo: vemos um especialista percorrendo, conosco, o progresso do idioma, cavando as estranhas da língua a buscar as justificativas para suas anomalias e particularidades, sempre procurando entender as motivações estilísticas (ou expressivas) que causaram a evolução, muitas vezes aparentemente ilógica, de seus vocábulos e construções.

Said Ali coloca-se como que dando lições a gramáticos inflexíveis, desconhecedores da evolução do idioma, da sujeição da gramática à língua falada, iluminando-nos, ademais, em diversas questões que naturalmente suscitam muita dúvida no uso do português.

Consagrado e respeitado por muitos intelectuais, Manuel Said Ali ocupa lugar honroso entre os estudiosos da língua portuguesa. Entretanto, parece não agradar às livrarias e editoras…

5- Gramática metódica da língua portuguesa, de Napoleão Mendes de Almeida

Esta Gramática metódica da língua portuguesa, de Napoleão Mendes de Almeida, é simplesmente a melhor gramática portuguesa disponível no mercado — leia-se: nos sebos. — Digo isso após extensa pesquisa, após contato com diversas outras gramáticas, digamos, mais “atuais”.

Que precisa uma gramática para ser boa?

Em primeiro lugar, de método. O autor precisa saber organizá-la de maneira coerente a expor-lhe a matéria. Os capítulos devem prosseguir como operassem uma continuidade na cabeça do estudante. Caso contrário, a gramática deixará de ser objeto de estudo sistemático, passando a ser tão somente uma ferramenta de consulta. Não é o que Napoleão Mendes de Almeida propõe.

Uma boa gramática, também, depende da capacidade elucidativa do autor, de sua habilidade em expor da maneira mais clara e precisa possível a maleável matéria de que se ocupa. Aqui, Napoleão Mendes de Almeida se destaca indubitavelmente. Lemos suas explicações com atenção e todas as dúvidas parecem sanadas, todos os aspectos das questões parecem abordados e as regras do idioma se nos apresentam claras, simples e concisas.

Outro ponto fundamental: variedade e qualidade de exemplos. Novamente, entre todas as gramáticas que tive contato, nenhuma se aproxima do patamar alcançado nesta Gramática metódica da língua portuguesa. Temos, aqui, exemplos escolhidos a dedo, seja da linguagem popular ou retirados de grandes artistas.

Infelizmente, porém, essa gramática saiu do circuito, inabita as livrarias e salas de aula. Paciência… Mas poderíamos dizer presumível, coerente.

6- O homem que nasceu póstumo, de Mário Ferreira dos Santos

Mário Ferreira dos Santos… Que surpresa me guardou este 2020! Já havia escutado sobre esse autor elogios inúmeros, dizendo tratar-se de um gênio.

Pois leio seu O homem que nasceu póstumo, um estudo sobre a obra de Nietzsche, em seguida enveredando pela sua tradução do Zaratustra (ed. Vozes), em que Mário faz uma profunda análise simbólica da obra através de notas riquíssimas.

Que vi em Mário Ferreira dos Santos? Posso resumir da seguinte maneira: vi, simplesmente, um brasileiro conversando de igual para igual com Nietzsche.

A interpretação de Mário é brilhante, para dizer o mínimo. O conhecimento exposto através de seus comentários, a mim, é algo inédito. E falamos de um autor que publicou cerca de 10 mil páginas!

Entretanto a situação de Mário, ao que parece, é diferente dos outros autores citados nesta lista. Se esse filósofo enorme foi praticamente ignorado em vida, tratando de editar ele mesmo os próprios trabalhos e havendo em torno de si um silêncio absoluto por parte dos intelectuais do país, agora aparentemente foi descoberto, e seus mais de 40 volumes parecem estar sendo reeditados pela excelente É Realizações.

O homem que nasceu póstumo, porém, ainda não foi contemplado com a reedição — que, aliás, é necessária, visto haver na obra alguns erros simplíssimos de edição que lhe arranham a qualidade. — Mas esperamos que seja em breve, pois este trabalho merece edição digna de si e merece — o dedo revolta-se… — estar, no mínimo, disponível para compra nas livrarias.

7- Obra completa, de Raimundo Correia

Fechamos com novo e derradeiro lamento. Façam, amigos, uma lista séria com os maiores poetas da língua portuguesa e lá estará obrigatoriamente o nome de Raimundo Correia, esse gigante maranhense, cofundador da Academia Brasileira de Letras que, hoje, encontra-se praticamente esquecido.

Essa, ao menos, é a minha conclusão, posto não ser possível comprar nenhuma de suas obras em livraria alguma, senão seleções de seus “melhores poemas”.

Os grandes poetas brasileiros costumam ter essa sorte: as editoras, a poupar folhas ou evitar prejuízo, reduzem-lhes as obras aos “melhores poemas”, ou a qualquer coisa que o valha.

A ideia faz sentido: evitar dispêndio de papel e tinta imprimindo somente o que tem valor — ou, se quiserem, o que tem “maior valor”.

Posso às vezes parecer ingênuo, mas aposto como essa brilhante ideia não saiu da cabeça de algum marqueteiro experimentado! “Melhores” no título — deve ter apontado na mente do gênio — impulsionará as “conversões”.

Então vemos a literatura, a arte, a elevação humana, os esforços de uma vida inteira, subjugados todos ao mais rasteiro utilitarismo. Os artistas, mortos, já não podem protestar. E assim se dissipam os títulos das obras, levando consigo parte de sua identidade… — talvez, ao menos, para algum lugar melhor…

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Deixar de iludir-se é deixar de viver

Duas quadras do belíssimo poema Desilludido, de Raimundo Correia:

« Fausto! Que vens buscar aqui, sceptico e triste?
Suffocaste no seio o amor; que resta mais?
Na eschola onde, um por um, os sonhos consumiste,
Entraste vivo outr’ora e hoje cadáver sahes!

« E’s um morto! Como ha de a loura Margarida
Teus lábios ao calor do seu beijo aquecer?
Perdendo as illusões, também perdeste a vida,
Pois deixar de illudir-se é deixar de viver!

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