Publicação: ato de renúncia

Entendo a publicação como um ato de renúncia. Publicar é, sumariamente, desistir de aprimorar um texto. De minha parte posso dizer: todas estas notas são escritas ao sábado, ou antes: escritas durante a semana, enquanto tento dormir, então reescritas ao sábado e abandonadas, impreterivelmente, aos domingos, quando lhes agendo a publicação. Sempre publico em desalento, decidido a fazer melhor na próxima semana. E o mesmo digo aos livros: tenho, finalizado, um volume de trinta contos, ao qual sequer posso olhar e que ainda não publiquei por motivo específico. A mim são linhas mortas, incorrigíveis, que virão a público em breve concorde eu com isso ou não. Poemas finalizados, idem: não posso lê-los, repugna a mim tê-los em contato visual. E só assim consigo trabalhar. Não me fosse possível esquecer-me as falhas, ignorá-las, então certamente estaria, ainda hoje, escrevendo meu primeiro conto.

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Como lidar com o bloqueio criativo?

Questão facílima e de pronta resposta. Como lidar com o bloqueio criativo? Dando-lhe a devida importância: nenhuma.

Até entendo o terror de alguns escritores com a tela branca, o vácuo de ideias, o tal “bloqueio criativo”. Mas vejo este como um problema extremamente frágil, passível de ser rompido com três batidas no teclado. O que chamam “bloqueio criativo” normalmente é o conjunto de desculpas psicológicas que um escritor repete a si mesmo para não escrever.

Enquanto for possível começar um romance com “Era uma vez…”, um conto com “Foi numa manhã ensolarada…”, um ensaio com “O objeto deste estudo…” ou um diálogo com “Como foi seu dia?”, bloqueio criativo jamais será um problema relevante.

Mas o que ocorre, e a pouca prática sempre me amparou, é que os dedos ativam o cérebro, e caso ousem digitar algo como “Era uma vez…”, automaticamente o cérebro, irascível e implacável, fará correção imediata, de forma que antes mesmo que os dedos deem cabo de seu intento juvenil, a frase já estará devidamente reconstruída.

O cérebro é senhor e corretor obstinado dos dedos, mas lhes necessita o estímulo para colocar-se a trabalhar. Assim, se um dia alvorece ensolarado, apenas por isso, o cérebro começará a pintá-lo conforme deve ser, e então os dedos, escravos agitadíssimos e precipitados, terão de rever o trabalho mal feito ou continuá-lo caso esteja bom, o que farão com muito gosto, visto serem afeitos à labuta. Em suma: tudo se resume a uma questão de movimento.

Portanto, entendendo o “bloqueio criativo” como um problema da alçada dos dedos, tomando ciência de que, ao se sentar, imediatamente se porá a escrever, independente do estado emocional, do ambiente ou da motivação do dia, o escritor poderá, assim, guardar-lhe o ânimo para o trabalho terrível que o espera na revisão, que exigirá tudo o que for possível extrair de seu cérebro, atormentando-o com a forma inalcançável, a falha no ritmo do texto, o mau encadeamento dos parágrafos, a palavra que lhe escapa ou o não expressa com precisão… isso sem falar, é claro, do sentimento extremamente amargo que lhe brotará no peito assim que o cérebro começar a dar vida às linhas escritas em estado de emoção.

Esse tal “bloqueio criativo” é problema que suscita o riso quando o escritor estaca arrepiado diante de um texto mal escrito, repleto de erros, prolixo, fastidioso, inexpressivo, sabendo que exatamente esse texto tomou-lhe dezenas de horas e constitui, em suma, o trabalho de sua vida.

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Aprender latim de forma independente

Diante de uma língua que parece jamais se entregar, frustrado em leituras que simplesmente não avançam, penosas, exigindo-me interrupções constantes, quebrando-me o raciocínio e escondendo-me terminantemente o ritmo dos textos, penso que aprender latim de forma independente talvez seja como construir um prédio de cinco andares, desde a fundação até o acabamento, com instalações elétricas e hidráulicas, sem dispor de manual algum nem auxílio de um único operário. Para que tudo isso? É o que me pergunto… Agrada-me o masoquismo intelectual? ofender-me, diversas vezes ao dia, ao ver-me pela centésima vez pinçando a mesmíssima palavra no dicionário? Um mistério…

Por esses dias vi uma professora de inglês a ensinar-lhe à aluna: “Enquanto continuar a traduzir, você não irá aprender”. Desde então estudo latim sorrindo. Olho-me ao caderno, com duzentas páginas de traduções e anotações que parecem grafadas a sangue, ciente de que, tendo em mãos um original latino, simplesmente não serei capaz de avançar.

Mas aí está, querido Latim: eu continuarei sorrindo enquanto você me humilha e me açoita. Para mim não faz diferença… Sei que o cérebro humano aprende à base de pancadas. Pode atirar-me seus pronomes terríveis, verbos depoentes, defectivos ou semidepoentes, duplo acusativo ou dativo, embaralhar a ordem das palavras, fazer-me consultar pela milésima vez o significado do mesmo advérbio…  Tanto faz. Estarei sempre pensando na professora de inglês a ensinar: “Pense em inglês, pense “cat”, pense “dog”, pense “bird”…”. E meu caderno, comprado já nem sei em que ano, continuará a ser preenchido, uma página por dia, até que você desista e se renda à minha obsessão de parvo. Estamos combinados!

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Romances psicológicos

Proverbiais são as críticas aos chamados “romances psicológicos”, isto é, romances em que o autor explora a mente e as motivações psicológicas de suas personagens e foca a narrativa na progressão dos fatos e ações.

Dizem alguns, sobre autores deste estilo de romance, carecerem de uma espécie de veia artística, que supostamente os obrigaria a pintar cada paisagem, cada ambiente com máximo detalhamento possível. É um ponto interessante.

Entretanto vejo o leitor muito mais interessado no arco de ação, nos dramas psicológicos de personagens que lhe causam alguma empatia ou repulsa, do que em saber, por exemplo, a respeito dos objetos deixados em cima de uma mesa em madeira com sinais de mofo.

Poderíamos aqui prosseguir em discussão extensa, polêmica e absolutamente inútil, e o leitor acabaria por contrapor-me as palavras às belíssimas descrições feitas por grandes artistas, como se encontra com frequência em Tolstói, Turgueniev, Tchekhov, Eça de Queiroz e muitos outros. Não vem ao caso.

O que quero dizer é o que vejo operando na cabeça do leitor quando em contato com algum destes ditos “romances psicológicos”.

Se, por um lado, é possível apontar carência em descrições destes romances, por outro podemos dizer que o fio da narrativa jamais afrouxa, jamais se rompe, e que o leitor, absorvido e concentrado, passa a desempenhar papel ativo na narrativa.

Que quero dizer? Pensemos, por exemplo, nas descrições físicas das personagens.

Há narrativas onde o autor nos não concede senão um ou dois traços característicos da personagem e então lhe descreve minuciosamente o psicológico.

Que fazemos? Através das características psicológicas desta personagem, passamos a desenhá-la fisicamente baseando-nos em nossa própria experiência. O personagem tem vasto bigode? Ótimo: o que, em nós, evoca um vasto bigode?

Outra: o autor traça o psicológico de um canalha. Como é, fisicamente, o maior canalha que já conhecemos? Pois façam, psicólogos, as devidas pesquisas e confirmarão o que vou dizer: o canalha, se não descrito em detalhes, sairá detalhadamente desenhado pelo leitor, ou ainda: o leitor, talvez, não necessite de demasiadas informações.

E finalizo refletindo: que história parecerá mais real, mais intensa e instigante ao leitor: a que ele completa e participa ativamente, desenhando personagens semelhantes ao seu próprio universo, ou a que o autor…

Não há necessidade de completar a pergunta. Cabe ao artista, porém, o planejamento e a distribuição inteligente de seus gatilhos, usando-os, evidente, com a devida cautela.

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