Esperança: o aguardente santo

Se, por um lado, a esperança é a estupidez suprema, “a apólice do pobre”, a “erva daninha que come todas as outras plantas melhores” — parafraseando Machado de Assis, — por outro a esperança é, de fato, virtuosíssima, indispensável, de modo que, abstendo-nos dela, a vida facilmente se nos afigura insuportável. E então? Que decidir? Que fazer deste aguardente santo? Tomá-lo ou não? Naturalmente, cada qual deve sorver a quantidade que mais lhe apeteça — tratando a abstinência e a gula, como sempre, de apontar-nos quem são os imbecis.

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A frivolidade de Eça de Queiroz

Deixemos falar Eça de Queiroz, que tantas vezes viu-lhe os romances acusados de frívolos:

Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:

— É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida — a paixão.

— Muitas outras coisas dão valor à vida… Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!

— E que somos nós? — exclamou Ega. — Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão…

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim…

— Creio que não — disse o Ega. — Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor…

— Resumo: não vale a pena viver…

— Depende inteiramente do estômago! — atalhou Ega.

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear… Não se abandonar a uma esperança — nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo… Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades. Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Ecclesiastes, em desilusão e poeira.

— Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo… Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correto, que é o único que se deve ter na vida.

— Nem eu! — acudiu Carlos com uma convicção decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém.

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Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski

Na primeira vez em que li Crime e castigo, levei dois dias para dar cabo às 590 páginas da minha edição. Foi inédito para mim ler um livro com tamanha voracidade. Lembro-me que, num sábado chuvoso, iniciei a leitura por volta das 16h; quando o sol raiou, às 6h do domingo, ainda estava eu com o livro nas mãos. Censurado pelo sol, optei por dormir algumas horas. Ao acordar, enveredei na sessão de leitura que daria remate ao livro. Mas por que meu encanto? Que é que tem esse livro de tão especial? Para começo de conversa, foi Crime e castigo meu primeiro contato com Dostoiévski: nunca havia lido nenhum autor que se aproximasse de sua acuidade psicológica. Lendo Crime e castigo senti-me, fisicamente, na Rússia; senti-me, aterrorizado, um assassino e senti-me, em maldição, assolado pela culpa. Pela primeira vez articulei e validei em mente pensamentos niilistas, que brilharam numa lógica incontestável e evidenciaram a mim a relatividade da moral. Páginas depois, tudo isso cai por terra, e Raskólnikov logra conduzir-me junto de si ao abismo. Febril, delirante, faz-me sentir na pele a tensão da culpa, o medo da perseguição. E, em meio a trevas, desesperado e arrependido, ensina-me o que é redenção; junto de Sônia, ensina-me o que é a carne e o que é a alma; e condenado, ensina-me o verdadeiro valor das coisas terrenas. Fechei o livro resoluto: aconteça o que acontecer, serei escritor.

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Chineses e a vaidade

Sou, há quase uma década, vizinho de porta de uma família chinesa. Acabei, por esse motivo, tendo a oportunidade de conhecer e conversar com mais de uma dezena de chineses. E de um tempo para cá, sem nenhuma razão aparente, passei a articular: parece-me — posso muito bem estar enganado… — que o chinês, via de regra, é menos vaidoso que o ocidental. Aprofundando-me a investigação, descobri que na China não há, por exemplo, debate político. Vejam só! Sempre pensei que um mundo sem debates políticos seria menos arisco e que, sumariamente, todo debate de ideias é, antes, uma guerra de vaidades. Pois que o chinês comum não sente a menor necessidade de ver debatedores disputando inteligência, provando ao público a sensatez das próprias ideias! E o chinês comum não liga o rádio para ouvir o comentarista político a dizer: “Tenho a melhor análise!”, ou para ouvir o comentarista econômico a prever: “Tal medida falhará!”. O chinês comum, parece-me, faz cuidar da própria vida; e a China, parece-me, não caminha quase a estourar em debates, polêmicas, vendo verter o ódio a qualquer lugar que se olhe, com seus cidadãos em rixa, agressivos uns com os outros, quase a se matar por opiniões pessoais estúpidas a respeito de assuntos que, não bastasse o desconhecimento, não lhes guardam a menor possibilidade de ação efetiva. Por um momento, julgo o chinês comum superior ao maior de nossos eruditos.

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