Resistir à vida prática

Vejamos um trecho do excelente livro de Andrei Tarkovski, Esculpir o tempo:

Na verdade, sou fascinado pela capacidade que tem um ser humano de resistir a forças que impelem os seus semelhantes para a competição, para a rotina da vida prática: e esse fenômeno contém o material de muitas e muitas outras idéias para meus futuros trabalhos. E nisto que se baseia também o meu interesse por Hamlet, sobre o qual pretendo realizar um filme em futuro próximo. Esta peça das mais sublimes coloca o eterno problema do homem que é moralmente superior a seus pares, mas cujas ações necessariamente afetam e são afetadas pelo desprezível mundo real. É como se um homem pertencente ao futuro fosse obrigado a viver no passado. E a tragédia de Hamlet, tal como a entendo, está não em sua morte, mas no fato de ter sido obrigado, antes de morrer, a renunciar à sua busca da perfeição e transformar-se em um assassino comum. Depois disso, a morte só pode ser uma saída bem-vinda, pois de outro modo ele teria que se suicidar…

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Atitude inteligente

Talvez seja uma atitude inteligente inebriar os sentidos em toda oportunidade e em todo o tempo livre que surgir, jogando areia na consciência e calando a voz interna que surge aos berros cantando ao ser humano a melodia macabra do vazio. Enfrentá-la é sinal de coragem? Pode ser… Mas certamente negar o abismo (adiando eternamente o confronto com o nada) permite uma vida socialmente aceitável e sensata segundo os termos da modernidade. A outra opção é, dançando ao som de uma valsa fúnebre, afundar em melancolia desesperadora e atroz.

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Alfred de Vigny: “La solitude est sainte”

“La solitude est sainte” — assim disse, no século XIX, o poeta romântico francês Alfred de Vigny. Hoje, julgo impossível redigir uma frase como essa; quer dizer: as pedradas seriam a recepção inevitável. Em nossos dias, tudo é coletivo: os homens estão, de mãos dadas, a cirandar em torno do belo mundo que compartilham. E se, por um momento, alguém vê irromper em si um impulso ao retiro, uma necessidade de solidão, pois que não faça alarde! Caso contrário, será esmagado como um inseto, censurado por qualquer que tenha o desprazer de ver-lhe a falta de maturidade social. O solitário é um doente, não ter em si o senso de coletividade é ser inferior. Hoje, só o bem comum interessa, e só ao bem comum deve direcionar-lhe os esforços alguém sensato, moderno e consciente. Sendo assim, não me considero senão um quadrúpede: julgo qualquer tipo de inteligência coletiva impossível e não tenho em mim qualquer senso de pertencimento. O ser humano, para mim, só se desenvolve intelectualmente no silêncio e no retiro. Por isso não posso ser lido, e por isso não encontro sequer um livro de Vigny em português na Amazon ou na Saraiva. Este século é espaçoso demais para ceder albergue à solidão.

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Emil Cioran, mestre emérito em cinismo

Sempre busco inspiração em Emil Cioran, filósofo romeno que radicou-se na França, rompeu com o próprio idioma e tornou-se um dos maiores prosadores da língua francesa. Alguns de seus livros, infelizmente, não possuem tradução portuguesa, como os maravilhosos Aveux et Anathèmes e Solitude et destin — entretanto, há iniciativas honrosas em traduzi-lo, como por exemplo a do professor José Thomaz Brum, através da Editora Rocco. Moralista feroz, dotado de erudição invejável, é comum vermos em Cioran uma sentença cruel intercalada com alguma metáfora absurda, cômica ou risível. Isso, desde a primeira leitura, causou-me impressão fortíssima, no início gerando uma certa incompreensão. Zombaria em meio a assuntos morais? Foi então que percebi o óbvio: é impossível refletir em profundidade não dispondo de senso de humor. Nosso fim é o pó, nossa existência é um sopro; estupidez é levar tudo tão a sério. E como as coisas mais graves não são em essência senão passageiras, tudo é passível de riso e escárnio. Ou seja: a verdadeira inteligência se manifesta através do bom humor. Cioran ensinou-me a rir de tudo: dos outros, do mundo, da morte e de mim mesmo. Com ele aprendi a provocar pela graça, a desdenhar pelo charme, a denegar para provar a mim mesmo que não me apego a nada. Descobri, em Cioran, que o cinismo é nobre enquanto face exaltada do bom humor; é sinal de maturidade, e não o contrário… Assim, às vezes imagino-me estirado numa cama diante da morte. Tenho ainda um último desejo: posso pedir a salvação da humanidade, uma dose de morfina, o que eu quiser. Mas vou morrer, isso é certo. Então alço a vista e dirijo-me ao vulto que acompanha o meu suplício: “Por favor, por favor… conte-me a última piada”.

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