O homem moderno trabalha

O homem moderno trabalha; quando não está trabalhando, está em seu momento “livre”, em seu momento de “lazer”, no momento em que distrai-se e pratica hobbies. Nisto se lhe resume a filosofia de vida. E é por isso que, hora ou outra, seu mundo desaba. A mediocridade da vida que leva escancara o vazio de todas as suas ações. É como se tivesse aceitado viver como uma máquina bifuncional; não há sentido na maneira como vive, há dois botões: no primeiro, liga-se o modo “trabalho”; no segundo, ativa-se o modo “tempo livre”. É ridículo pensar que este proceder chama-se atualmente “normalidade”, cujos desvios já produzem excêntricos e alienados. Ser normal, hoje, é vender ou matar o tempo de que se dispõe. “Qual é o seu hobby?” — e um homem de uma época longínqua se sentiria insultado.

O caráter utópico da possibilidade única de harmonia social

É curioso notar o caráter utópico da possibilidade única de harmonia social. Esta implicaria, basicamente, a liberdade individual e a proteção contra as tentativas de sua violação. E é impossível porque manifesta-se no mesmo indivíduo que carece de liberdade o impulso incontrolável de violação da liberdade alheia para a realização de seus anseios. Tal impulso, é claro, é minorado quando se aumenta a distância entre os indivíduos, livrando um da presença do outro — o que não é possível nas cidades modernas superpovoadas. Força é, pois, que se resolvam, ou que alguém os obrigue a se resolver. Mas surge um impasse: tolerar plenamente o outro é o anarquismo e o caos; o caminho oposto é a supressão das liberdades. Disto observa-se que o convívio necessariamente cria desequilíbrio, e só se alcança alguma estabilidade social proibindo, controlando, impedindo, o que acaba acarretando a natural reação daquele que tem a liberdade violada, que é o mesmo que necessita impor-se, invadindo a liberdade alheia, e que representa a justificativa inquestionável das proibições e controles. Sociologia é o fim!

A plena objetivação operada pela modernidade…

A plena objetivação operada pela modernidade e a subsequente doutrinação das massas para essa peculiar maneira de encarar a realidade produziu indivíduos carentes de uma importantíssima faculdade mental. Adestradas a considerar proibidas determinadas hipóteses, as novas mentes já crescem com um défice de possibilidades, que lhes são arrancadas pela raiz. Cada vez mais parece óbvio que a maior miséria desta época é ter objetificado o ser humano, e portanto lhe destruído a dimensão transcendente, resumindo-lhe ao caráter limitado e corrompido da matéria comum. As consequências desta noite terrível do espírito humano vão da desumanização ao emburrecimento, da destruição cultural ao regresso moral, do caos ao vácuo que se lhe tornou característico. Como foi possível chegar a esse ponto? Mais uma vez, parece certo quando Tolstói diz que há circunstâncias históricas que parecem definidas por uma força maior — resta-nos, como sempre, o espanto e a hesitação no conjeturar os porquês…

A queda obrigatória

Diz Mário Ferreira dos Santos, em Filosofia da crise:

Consideramos como um fator de degenerescência de toda a construção do ser humano, aquele momento em que ela começa a subir os degraus do absolutismo. Esses degraus podem ser expostos da seguinte maneira:

1) uma doutrina é considerada como certa e eficaz;
2) como a mais certa e eficaz;
3) como a única certa e eficaz.

Ao alcançar esse terceiro ponto, toda e qualquer objeção é considerada herética. Não é mais possível, nesse momento, transigir com os adversários, porque a própria defesa da doutrina exige uma vigilância constante contra todos os opositores, e até contra partidários vacilantes, transigentes ou tíbios, e toda vacilação é uma ofensa aos princípios absolutamente VERDADEIROS, sobre os quais não se pode permitir o menor vislumbre de dúvida ou a menor suspeita.

E se essa doutrina ou sistema dispuser do poder físico, ela o exercerá inevitavelmente, empregando a força para combater opositores e partidários dúbios e vacilantes.

Não é possível descrever com mais precisão a práxis vigente no ocidente moderno. A prisão ideológica em que se meteu evidencia o zênite já atingido e a queda obrigatória. Tudo, tudo repetindo-se novamente… E este policiamento autoritário destes dias, como mostra Mário, não faz senão instigar uma reação contrária violenta, que acabará por destruir todos e cada um dos valores tidos como supremos pelos sacerdotes da intolerância. Tendo a inércia impossível, escalar degraus parece compulsório; mas, do topo, só há movimento possível para baixo.