Impressiona o interesse do indivíduo — e não sei se deveria dizer desgaste — por aquilo que lhe escapa totalmente ao campo de ação. O sujeito lê o jornal e quer dizer ao mundo suas opiniões. Discute com o vizinho, revolta-se na divergência, atrita com quem quer que lhe conteste. Então compra mais jornais, busca informar-se mais para, na próxima ocasião, aniquilar os adversários de um debate que jamais levará a lugar algum. Despende tempo e nervos no inútil. Lê, para cada página de jornal, uma a menos de Shakespeare. Não compreende a própria insignificância, ignora o caráter nocivo da própria postura. Mas prossegue, é claro, em nome de sua maior virtude: a vaidade.
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A tendência moderna de produzir “especialistas”
Há, a nível mundial, uma tendência escancarada a produzir “especialistas”. A princípio, é natural que todas as áreas apresentem um aprofundamento e que estudos cada vez mais detalhados sejam disponibilizados ao estudante comum. Entretanto, a pergunta: e o conjunto? e a ligação entre áreas distintas do conhecimento? e a visão panorâmica, abrangente? Digo e penso em duas coisas. Primeiramente, na monumental História da literatura ocidental de Carpeaux, uma obra que, quanto mais a analiso, mais a considero valiosa: nela, que jamais poderia ser classificada como “superficial”, mais de vinte séculos de cultura estão magnificamente concatenados. O estudante vê brilhar diante de si o elo impossível e conquista, em relativamente poucas páginas, uma visão que o permite transitar pelas mais diversas correntes de pensamento. Uma obra deste tipo é o oposto da tendência intelectual vigente. Em segundo lugar, penso nos estudantes. O interesse múltiplo, o estudo diversificado não costuma fazer carreiras: cresce quem se torna um “especialista”. Tornando-se um “especialista”, o estudante flerta com a possibilidade de conhecer uma área e ignorar todas as outras, ignorando, também, a aplicabilidade real do próprio conhecimento. Muito bem! Que vale mais, ou para que serve o estudo? Parece-me, nas respostas, residir a principal distinção entre os intelectuais modernos.
O monstro moderno
Mário Ferreira dos Santos, sobre Nietzsche:
Era ele adversário do Estado, o monstro moderno, o Moloch dos nossos dias, o devorador de homens e de consciências, a mais brutal criação da fraqueza humana e que terminará por cansá-la totalmente, a ponto de, um dia, abominar todas as formas de opressão, e destruí-las com um ímpeto que fará estremecer as páginas da história. Não o poderá facilmente compreender esse homem de hoje, esse cativo que lambe as algemas, esse “Haustier”, esse animal domesticado, que se acostumou a adorar o monstro de que ele fala.
A nota data de 1957. Que dizer? Pouco mais de meio século, e podemos verificar a precisão da brilhante observação de Mário. O colapso do estado moderno é inevitável, entretanto… o “cativo que lambe as algemas” continua, passivo, a lambê-las, num estado de inconsciência admirável em que não exibe o menor sinal de esgotamento. A situação só fez agravar: o monstro cresceu, ampliou-lhe o domínio, e já dispensa qualquer pudor. A questão, porém, perdura estática: até quando? De um lado, a reação é inevitável; doutro, o despertar parece distante. O que resta evidente é que, como bem previu Mário, chegará o dia em que o “devorador de homens e de consciências” ver-se-á diante de uma explosão violentíssima e extraordinária, oriunda de uma letargia que aparentava perpétua.
Preferências da maioria
Continuo, obsessivo, em meu diálogo mental com Tolstói. É verdade, nunca conheci pessoalmente um mujique, nada sei sobre suas preferências artísticas. Mas sei sobre as da maioria brasileira. Viro-me a Tolstói e digo: “Dê uma olhada”. Abro, de uma só vez, as listas de maiores bilheterias no cinema, de músicas mais tocadas e de livros mais vendidos no Brasil no último ano. Para meu espanto, encontro Orwell e Emily Brontë. Para o espanto de Tolstói, são dois nomes em meio a um mar de lixo. “Está vendo? — digo-lhe sorrindo — a maioria tem horror à verdadeira arte”. Tolstói me não responde, deve estar a refletir sobre as críticas que teceu sobre a música de Wagner…