O que se chama “sociedade” exige a representação de um papel

O que se chama “sociedade” exige, de todos, a representação de um papel. E a liberdade inicia-se após essa recusa. Brilhantemente exposto por Jung está o choque irreconciliável entre o psicológico coletivo e o individual, que leva o ser humano a uma entre duas alternativas: ou reprimir a própria individualidade e tornar-se uma ovelha socialmente aceita, ou romper com a sociedade e sofrer na pele as consequências desta decisão. Não há como fugir, o existir da “sociedade” induz uma postura ativa, senão de anuência, de recusa. Assim divisamos qual a decisão mais fácil e infinitamente mais lucrativa. Por outro lado, resta evidente quais seres humanos são intelectualmente dignos de respeito — e quais não.

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A poesia lírico-amorosa está condenada ao desaparecimento

A poesia lírico-amorosa, senão morta, está condenada ao desaparecimento. Essa é, sem dúvida, a conclusão que berra após uma observação apurada das últimas décadas. O que ocorreu não foi uma mudança no caráter dos relacionamentos, mas um sepultamento definitivo de quanto servia de inspiração aos versos que já nem comovem. Poderia citar o pensamento corrente, a psique socialmente aceita pregadora do desapego. Mas esta é demasiado frágil, só aplicável enquanto máscara da psique individual e só relevante enquanto manifestação da hipocrisia. O que ocorre, porém, é que as pessoas tornaram-se pratos de um cardápio sempre online e acessível a um toque. Distância, medo da perda e, principalmente, carência de meios e opções sempre atuaram como tonificadores de um relacionamento, a despeito das aparências. O lamento, num verso, não é senão a expressão do afeto por alguém que aparenta especial e insubstituível. Hoje, tudo isso acabou. E se o século vigente aparenta evoluído, veremos como reagirá quando exposto o terrível e imenso vazio aberto pela perda em massa dos vínculos afetivos — outrora fulcros formadores de sentido, — pelo endosso de soluções falsas e pela desumanização gradual do ser humano. Imagino crianças assustadas entupindo os consultórios psicológicos…

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O meu jornal

Sonhei ter criado um jornal. A cena foi a seguinte: em redor de uma mesa, minha equipe, empolgadíssima, pôs-se a discutir a linha editorial do periódico, quando os ânimos se exaltaram. Combateríamos as injustiças do mundo: claro, claro! E a representatividade seria pauta obrigatória! De quem, onde? Eis o que os gritos tentavam expressar. Cada um berrava a própria opinião. Eu via-me calado, receoso de dizer o que pensava — mas pensava: “Oh, magnífica bobagem!”; e, óbvio, dizê-lo seria minha ruína, visto algumas opiniões serem proibidas socialmente… —Então, em plena guerra verbal, quando tudo aparentou irresolúvel, solicitaram-me a palavra de dono do jornal. Súbito, tendo de expressar em poucas palavras a minha opinião sobre qual classe era a mais injustiçada de todos os tempos, sobre quais matizes julgava mais nobres para o jornal, e cuidando não ofender a equipe que necessitava motivada, respondi: “Vamos fazer o seguinte. Todas as pautas são muito importantes” — e conduzi, todos eles, a um crematório. Solicitei uma entrevista com o operador de forno; pedi-lhe: “Explica pra gente, amigo, em que consiste o seu trabalho”. Naturalmente, meu jornal jamais publicou uma primeira edição.

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O ser humano vive em estado vegetativo

Creio ter sido Hegel quem disse que “aprende-se da história que o homem nunca aprende com ela”. Verdade inquestionável. Porém apenas o sintoma de um problema maior. O ser humano vive em estado vegetativo, ainda que, por vezes, aparente o contrário. Não é somente as lições da história que ele se mostra incapaz de apreender, mas a própria realidade. Racionalmente, viver parece uma impossibilidade. Se o ser humano raciocinasse e usasse do juízo que cuida dispor para assimilar a própria existência, punha-se imediatamente no meio-fio a chorar. Mas não é o que acontece. É necessário que um amigo próximo, que um familiar morra para que o sujeito desperte do estado vegetativo e raciocine algo como “poderia ter sido eu”. Entretanto, o surto é fugaz: a consciência desperta e, imediatamente depois, põe-se mais uma vez em sono pesado. Então o ser torna ao estado que lhe é habitual, em evidência do caráter vicioso do próprio juízo. É incrível! Parece ser esse um mecanismo psicológico adaptativo, quer dizer, se não mergulhado em profunda inconsciência, quem moveria uma única palha? Construiriam o Titanic, soubessem-lhe o fim? E da vida o fim está claríssimo… Mas já estamos divagando. “Aprende-se da história que o homem não aprende com ela”: o homem, o ser que ignora tudo, o cego sorridente. E parece a mesma programação mental que exige a dormência justificar desde a estupidez individual até a tolice coletiva de um mundo que, há mais de meio século, não enfrenta uma grande guerra…