Sobre a peste

Como habitual, a contingência expondo a fragilidade do homem, desnudando-o por completo. Seus reflexos naturais: o medo e o desespero. Assim, nenhuma novidade: cadáveres sempre assustaram. Entretanto, talvez a nova peste tenha exposto um fresco fenômeno de massa: a dependência do trabalho. Digo isso por ver os que, enclausurados à força, gritam ao ver-se-lhes a vida esvaziada de sentido, quer dizer: se não há o trabalho, que resta ao homem?

Versamos aqui sobre uma classe que, ao menos, tem na vida algum propósito… Mas aí está o que a peste ilumina, a despeito das evidentes fragilidades econômicas e sociais modernas: a vida orientada à profissão envolve um risco óbvio, agravado paulatinamente pelo tempo, de converter em doença fatal o vazio das mãos que se lhe veem escorrer pelos dedos o trabalho. Mãos que, aposentadas, poderão encontrar numa corda o seu único alívio.

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Sarcasmo, sarcasmo…

Vocês acabarão concluindo que sou incapaz de me afeiçoar: muito bem, muito bem… quase lá! E chegará o dia — isso parece-me evidente — em que eu não mais me suportarei. Pois a conclusão é óbvia: vejo em tudo mazelas… e a mim mesmo não me julgo demasiado especial… Contudo me agrada o meu próprio cinismo, e isso dá-me forças, distingue-me do mundo em redor. Penso por quanto tempo… Mas que opções teria ao meu feitio exótico? Digo: já estou contaminado. Poderia eu, hoje, neste estado, dizer palavras de esperança? Poderia crer-me uma exceção? Fazer de minha mente um teatro (como faço de minhas relações)? De forma alguma… meu cinismo jamais permitiria. Não vejo nos outros senão o que habita e lateja em mim mesmo, portanto encabeço, sem dúvida, a lista de meus condenados. Com a diferença, claro, da consciência e do sorriso sarcástico no rosto…

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Pastores evangélicos

O capitalismo é pleno entre os pastores evangélicos. Não que constitua algum demérito, mas capitalizar o nome de Deus soa-me um marketing demasiado agressivo. Por que novamente me meto onde poderia evitar? Em todos os tempos e em variadas religiões, foi o líder espiritual um asceta: negando os prazeres da carne, pagava pelo título de autoridade espiritual. Exatamente com a igreja evangélica isso mudou, e hoje o pastor veste traje completo, tem esposa e anda de Hillux. Será que só a mim causa estranhamento? Percebo, desconcertado, a obsessão de pastores com os fariseus: vejo-lhes condenando, num só pacote, o conhecimento e a ganância. Mas nunca vi, nem ouvi falar, em toda minha vida, de um único pastor de igreja mediana em dificuldades financeiras: mais, a pregação remunera-lhes qual exitosos empresários. Creio precisarmos de uma redefinição: que é a ganância? Sobretudo, que sempre representou a ganância nos tempos antigos?

Prossigo — e arrepio-me diante da obsessão: — só pode falar de ganância aquele que dá as costas ao dinheiro. E se vejo um pastor evangélico com mais dinheiro que seus fiéis, considero-lhe um hipócrita. Paciência, muita paciência com minhas generalizações… Mas não sou eu a pregar que somos todos irmãos. Por que o pastor não dá o exemplo? Poderia começar, de bom grado, partilhando-lhe a riqueza e guardando para si somente o necessário à vida — e a espalhar seu verbo, como mensageiro de Deus. Mas se contenta o pastor com tão pouco? De jeito nenhum! O pastor quer apartamentos e carros luxuosos, quer viajar pelo mundo e julga-se filho de Deus, isto é, julga-se apto a gozar, também, dos prazeres do capital. Muito bem, muito bem… E cada qual lidando com a própria ganância e mirando a face hipócrita no espelho.

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Particularidades psicológicas

Acho incrível como meu absoluto desencanto com o mundo se não tenha revertido em morbidez. Em geral, estou sempre bem humorado, rindo em pensamentos, ainda que a experiência já se me afigure como esgotada. É verdade: não sou bem humorado a muitos mais do que a mim mesmo, mas julgo como quase um milagre ver-me sorrindo, a desejar uma vida absolutamente medíocre sobre o ponto de vista dos homens de meu tempo. Tamanha incompatibilidade de gostos, de hábitos, de interesses e de temperamento poderia mais logicamente desaguar em tristeza, angústia, apatia e desespero.

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