Tradições e crise

Já foi notado, e com sabedoria, que em épocas de crise não resta a um povo senão apegar-se ao passado. No desespero da incerteza escancarada pela crise, emerge a tradição como um porto seguro, e assim aquela é vencida tanto mais facilmente quanto mais sólido for o passado de um povo, quanto mais estiver ele entranhado e presente no estágio atual. Disto é evidente que há nações mais e menos vulneráveis; impressiona, porém, quando notamos que as ditas menos vulneráveis, ainda que por um curto período, convertam-se na negação daquilo que sempre foram, parecendo romper com o elo histórico que as define. Automaticamente pensamos: e então, que será? Mas é curioso notar que, o mais das vezes, por conjunturas que talvez escapem ao raciocínio, surgem as tradições — sempre elas — revigoradas, e acabam como salvadoras de um futuro que parecia resumir-se no caos.

“O que dá ao homem um mínimo de unidade interior…”

Há razão quando Nelson diz que “o que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões”. Com o tempo, vão elas se extremando e como que se firmando no espírito até um ponto em que já se não pode demovê-las. Tomado em conjunto, é o espírito sintetizado por um misto de suas manifestações mais frequentes e mais intensas, qualidades correntes nas obsessões. A verdade é que há inclinações das quais, mesmo que tente, o espírito não se desvia, como se algo forçasse-o repetidas vezes a assumir aquilo que lhe é inato, a usar adequadamente as lentes que possui. Então vemos que o mesmo que para alguns é irrelevante e dispensável exerce noutros atração irresistível. Obsessões… a nível individual, o melhor é logo aceitá-las.

Embora seja interessantíssimo constatar…

Embora seja interessantíssimo constatar similaridades na abordagem de diferentes tradições do pensamento ao problema central da experiência humana, e embora elas possam efetivamente instigarem o despertar da consciência, não errará quem disser que todos os livros já escritos são insuficientes para que o indivíduo complete-se nesta terra, quer dizer, são eles inúteis a menos que estimulem a ação. Por isso este problema, que já rendeu linhas infinitas, ficará, a nível individual, sempre por resolver, a despeito da qualidade do manual utilizado. O espírito que desperta ou, melhor dizendo, o despertar, resume-se à constatação de uma obra por fazer, uma obra pessoal e intransferível, sem a qual a própria existência parece esvaziada de sentido. Portanto são muitas as vias que conduzem a este que seja talvez o momento capital de uma vida, mas os caminhos são inúteis, senão quando justificados pelo ato de percorrê-los.

Os escravos do passado

Se causa estranhamento, e um estranhamento legítimo, uma inteligência como Schopenhauer apegar-se a uma filosofia concebida aos trinta e passar o resto a vida a sustentá-la, que dizer de Freud, velho e de cabeça branca, a continuar limitando a psicologia humana à “sexualidade reprimida” e a traumas infantis? É o fim! Parece uma vida inteira desperdiçada, uma vida inteira em que o espírito não foi capaz de contemplar possibilidades superiores. Ou então evidência de um orgulho invencível, que tratou de sabotar-se estrangulando todo e qualquer lampejo que pusesse em risco as conclusões de anos precedentes. Como é possível, ou melhor, como não rir ao imaginar Freud, já no fim da vida, a despejar a mesma ladainha sobre um paciente igualmente velho? Dois homens, já com um caixão aberto a esperá-los, a vasculhar episódios da infância para reputá-los agentes de ações atuais. É verdadeiramente uma lástima que Voltaire tenha vivido antes de Freud.