Talvez não haja esforço que possibilite…

Talvez não haja esforço que possibilite a nós, modernos, uma real compreensão do homem medieval. Todo ele é-nos intrincado, mas parece o seu traço mais incompreensível ser aquele que Huizinga assim descreve:

No espírito medieval, todos os sentimentos mais puros e elevados foram absorvidos pela religião, enquanto os impulsos sensuais e naturais, deliberadamente rejeitados, tiveram de se rebaixar ao nível de uma mundanidade pecaminosa. Na consciência medieval coexistem, por assim dizer, duas concepções de vida: a concepção devota, ascética, que se apropria de todos os sentimentos morais, e a concepção mundana, toda ela deixada ao diabo, que se vinga terrivelmente. Se uma das duas predomina por completo, então surge o santo ou o pecador irrefreado; mas em geral elas se mantêm num equilíbrio instável, com oscilações da balança. Veem-se pessoas apaixonadas, cujos pecados em flor por vezes fazem sua devoção transbordar e explodir ainda mais violentamente.

É uma tensão muito mais forte, que embora extreme o vício, torna mais autêntica a virtude que se lhe contrapõe. É um comportamento tão apaixonado, e sobretudo tão sincero, que nos obriga a admitir que o homem moderno, comparado ao medieval, quiçá se destaque pela “moderação”, mas com certeza por um assombroso cinismo.

O estudo da história é desagradável

O estudo da história é desagradável porque nos obriga a mirar o homem completo, em todas as suas manifestações. Assim que ela demonstra-nos não o que gostaríamos, mas o que foi, e contrariados temos de defrontar crueldades infinitas atreladas a praticamente todos os “grandes feitos”. Mais investigamos, menor fica nossa lista de admirados, até um ponto em que começamos a questionar se realmente é possível, ao mesmo tempo, conhecer e admirar alguém.

As sociedades têm de revalidar os fundamentos…

Periodicamente, num espaço de poucas gerações, as sociedades têm de revalidar os fundamentos legados pela tradição, e não o fazem senão passando pelas mesmíssimas crises que resultaram na necessidade de sua fundamentação. O objetivo, pacificar entendimentos e evitar novas crises, é atingido apenas até que morram aqueles que o guardaram na memória, ou nem isso. A história, neste aspecto, só demonstra sua falência a uns poucos intelectuais.

Essa coisa de atribuir heroísmo a assassinos…

Essa coisa de atribuir heroísmo a assassinos depravados é algo que muito irrita nos livros de história, e é repugnante ver neles a naturalidade com que são narradas as perversidades mais assombrosas movidas pela ambição mais desprezível e, pior, o efeito inócuo destas nos pareceres do historiador. Heroísmo é sempre desprendimento, nunca o contrário. A normalização da barbaridade é a pior mácula histórica no caráter europeu.