Trem de ferro, de Manuel Bandeira

Uma aula de ritmo e expressividade:

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria o que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa fumaça
corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo na fornalha
que preciso
Muito força
Muita força
Muita força

Aô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De inagaseira
Debruçada
No riacho
Que vontade de cantar

Aô…
Quando me prendera
No canaviá
Cada pé de cana
Era um ofício
Aô…
Menina bonita
Do vestido verde
Me da sua boca
Pra mata minha sede
Aô…
Vou mimbara vou mimbara
Não gosto daqui
Nasci no Sertão
Sou de Ouricirri

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente.

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A vida assim nos afeiçoa, de Manuel Bandeira

Um dos belos poemas de Manuel Bandeira:

Se fosse dor tudo na vida,
Seria a morte o grande bem.
Libertadora apetecida,
A alma dir-lhe-ia, ansiosa: — “Vem!

Quer para a bem-aventurança
Leves de um mundo espiritual
A minha essência, onde a esperança
Pôs o seu hálito vital;

Quer no mistério que te esconde,
Tu sejas, tão-somente, o fim:
— Olvido, imperturbável, onde
Não restará nada de mim!”

Mas horas há que marcam fundo…
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo,
Cuja saudade extingue a voz.

Ao nosso ouvido, embaladora,
A ama de todos os mortais,
A esperança prometedora,
Segreda coisas irreais.

E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper:
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel.

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Mil vezes perdão

Perdão, mil vezes perdão, mas custo a aceitar… Quase todos os 154 sonetos de Shakespeare sobre o mesmo tema, quase toda a poesia lírica de Camões entoando o mesmo lamento… Como é possível? Digo e penso-me um bárbaro, amputado de minha dimensão humana. Mas não consigo engolir. Paciência… Não consigo e não há o que fazer. Eis a verdade: há uma espécie de sofrimento que jamais me arrancou um único suspiro, não me desperta a compaixão e por vezes me provoca o riso. Ó indolência! Ó crueldade!… acabarei muito, muito mal convosco…

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Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes

Mal começo estas linhas e sei que me faltarão palavras… Don Quijote de la Mancha, clássico dos clássicos, obra entre as maiores de toda a literatura universal, primor em todos os quesitos. De tudo o que já li, duas obras suscitaram-me algo que sou incapaz de descrever, um sentimento sem nome, a impressão de qualquer sorte de magia operando, como se houvessem sido escritas por algo diferente de um ser humano; são elas a Commedia, de Dante, e Don Quijote de la Mancha. Mas por quê? Eis o fascinante… El ingenioso hidalgo já foi objeto de obsessão de incontáveis artistas, inspirou muitas e muitas obras e não consigo imaginar alguém que, conhecendo-lhe a história, não se compadeça. Don Quijote de la Mancha faz despertar no leitor uma compaixão infinita, uma relação de afeto real para com a dupla Don Quijote e Sancho Panza. Tentemos esmiuçar a magia… Cervantes, de início, constrói uma união entre personalidades opostas: o caballero andante Don Quijote é, física e psicologicamente, o oposto de seu escudeiro Sancho. O primeiro habita o universo dos sonhos, submete a realidade ao imaginário, interpreta a existência quase em delírio. Já o segundo personifica o pragmatismo. O efeito dessa junção de contrastes é uma harmonia imensa e crescente durante a obra, posto Sancho desenvolver-se de forma a paulatinamente partilhar dos juízos de seu amo. Assim, Cervantes edifica uma relação de amizade que talvez não tenha par na literatura universal. A fidelidade de Sancho comove: quando fala, há sempre uma tentativa velada de conciliação e, acima de tudo, humildade. Já Don Quijote, não podemos deixar de perceber-lhe a ternura por trás do perfil beligerante. A narrativa avança exibindo um intenso conflito entre realidade e imaginação e el caballero, megalômano incurável, que desde o início mostra-se incapaz de perceber a própria mediocridade, gradativamente sucumbe ao próprio imaginário, perdendo a consciência. A realidade impõe-se e escancara o absurdo de tudo quanto Don Quijote sonhava. Mas deixa em aberto a pergunta: será mesmo que Don Quijote não viveu os próprios sonhos? Será mesmo a realidade prática senhora da existência? E, confrontados com um personagem falho, essencialmente frágil, cujas ações sempre remetem ao ridículo, mas que, ainda assim, acredita, não podemos deixar de julgá-lo movido a algo que nos escapa ao entendimento. Don Quijote de la Mancha é obra que dá vida ao mágico e evoca o divino. E o leitor não fecha o livro sendo a mesma pessoa: a doçura que permeia a narrativa impregna e amolece qualquer caráter. A existência, pois, abranda, e aprendemos — ainda que não consigamos explicá-lo — que a vida é mais bela quando não levada tão a sério.

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