Ocupação inglória

Dedicar-se a uma ocupação inglória, trabalhar com afã sobre-humano, conviver diariamente com a incompreensão; fugir do convívio, combater a ignorância, digladiar-se por meios de expressão; se preciso, enfrentar a penúria; olhar diretamente na dor; caminhar entre sombras, no silêncio, afastando-se em serena resolução; notar-se-lhe o ambíguo, o contraste, indeciso em que acreditar; não esperar nada, nunca!, jamais lhe abandonando o dever; sentir-se impotente, falho, arrependido de descuidos precedentes, envergonhado da mais recente produção; envelhecer combalido, frustrado, sem jamais perder no trabalho o amor. Morrer, finalmente, desconfiado do próprio valor…

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Introdução à estilística, de Nilce Sant’Anna Martins

Li, recentemente, Introdução à estilísitca, de Nilce Sant’Anna Martins, e impressionei-me com sua qualidade. A obra, destinada “especialmente a estudantes de faculdades de letras e a professores de português”, também é “de grande qualidade a todos que se interessam pelo estudo da nossa língua”. Bem escrita, bem organizada, com documentação extensa e de qualidade, dispondo de ótimos exemplos de variados autores, Introdução à estilísica aborda os numerosos recursos estilísticos que a língua portuguesa nos oferece. A professora Nilce, que lecionou na Universidade de São Paulo (USP) por quase vinte anos — e, fatalmente, veio a falecer em 2017 aos 93 anos de idade — demonstra argúcia e sutileza no trato com a língua; analisando períodos complexos, seja em verso ou em prosa, esmiúça com habilidade as intenções, os efeitos projetados pelo artista mediante as palavras. E, certamente, concretizou através de sua obra uma contribuição de grande valor ao estudo da língua portuguesa. Deixo aqui meu sincero reconhecimento ao trabalho da professora que, demais, aparenta ter sido muitíssimo querida por seus alunos.

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Pais e filhos, de Ivan Turguêniev

Diz-se de Bazárov — protagonista de Pais e filhos, de Ivan Turguêniev — o primeiro personagem niilista da história. A importância desta obra, portanto, é imensa. Bazárov inaugura na literatura a postura de negação a qualquer tipo de autoridade ou princípio moral. Intelectual materialista, diz não acreditar em nada senão concordando com o que pode cientificamente ser comprovado através da experiência. A religião, a tradição, a arte… nada disso tem valor: as gerações passadas são “cartas fora do baralho” e “um bom químico é vinte vezes mais útil que qualquer poeta”. O psicológico de Bazárov é interessante: apesar de negar tudo, de não se curvar a nada, de saber da própria inutilidade e da insignificância do próprio esforço perante o universo e a eternidade, trabalha com afinco, desenvolve com diligência suas pesquisas científicas. Parece, ao longo da obra, absorto, envolvido em algo de grande importância, o que lhe justifica a frieza para com os que o rodeiam. Ao conversar com os mais velhos, despreza-os; não os considera capazes de ensinar nada de útil. Em contrapartida parece, em seu racionalismo, buscar incessantemente o conhecimento. Bazárov, a despeito de sua frieza e de sua inclinação ao retiro, ao trabalho, trava variadas relações ao longo da obra. E Turguêniev consegue, com maestria, projetar-lhe a influência do niilismo em seu meio: inteligente, é respeitado por todos, entretanto direciona aos mais próximos indiferença absoluta, cruel, fazendo-nos questionar sobre sua humanidade. Súbito, Bazárov se apaixona. Vendo-se apaixonado, sente uma profunda vergonha de si mesmo: o amor romântico é absurdo, uma estupidez imperdoável! Então Bazárov afasta-se a ver se subjuga-lhe a debilidade. O amor como fraqueza? Essa ideia é-nos assaz familiar… Se não negamos a própria ciência, como Bazárov, é certo que nosso individualismo afasta-nos das relações, teme-as e faz de tudo para evitá-las; importantes mesmo, somos nós, e nosso amor-próprio exige-nos seguidas manifestações de afeto. E que faz Turguêniev do romance? Bazárov isola-se, centra-se em seu trabalho; progride, mas sua postura aflige a todos que lhe estão em redor. Desgraçadamente, apanha tifo ao cortar-se com a bisturi fazendo a autópsia de um homem tombado pela doença. Cai de cama, envolve os mais próximos em forte comoção. Nega, porém, a confissão, suplicada pelo pai torturado ao assistir o martírio do filho. Bazárov morre negando aos outros a própria importância.

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