O idiota, de Fiódor Dostoiévski

O idiota, de Fiódor Dostoiévski, é certamente um livro que abordarei em outras oportunidades. A obra, assim como Don Quijote de la Mancha, de Cervantes, é genial e pode confundir os incautos. Como disse em outra ocasião, agradeço muito não ter taxado esse livro de cômico, e o fiz somente por tê-lo lido já com algum preparo intelectual. Dostoiévski consegue, mais nesse do que em outros livros, dar amplitude à sua obsessão por personalidades tocadas pelo divino. O príncipe Míchkin, protagonista do livro, é a personificação do que se pode atingir de mais nobre enquanto ser humano. Dotado de bondade e complacência infinitas, o príncipe gera empatia onde quer que passe; entretanto, é incompreendido: seus semelhantes associam-lhe a candura à inocência, à falta de tino, taxando-o de idiota. Dentre todas as temáticas em Dostoiévski, é a deste O idiota a que mais me fascina: a elevação humana passando necessariamente pelo aniquilamento da vaidade. Míchkin sabe-se um incompreendido, ou melhor: sabe os outros julgarem-lhe um idiota; e mesmo assim não altera sua postura complacente para com ninguém. Que importa o que os outros pensam? Míchkin parece imune à concupiscência, e é capaz de fitar a maldade nos olhos, sendo luz pelo contraste com as sombras que evidencia em seu redor. Sua bonomia agride, molesta, e o convívio só lhe expõe a superioridade moral. Idiota? Assim como Aliócha, de Os irmãos Karamázov, parece Míchkin caminhar entre os homens para provar a assimetria entre o humano e o divino, a miséria e a graça, o terreno e o celestial. E prova-nos, indubitavelmente, toda a pequenez dos pequenos desejos, das pequenas vaidades e do orgulho, que aniquila o que talvez seria a única virtude humana digna deste nome.

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Amores incuráveis

Damos novamente espaço à pureza gramatical e profundidade de Camilo Castelo Branco:

Os olhos, durante a morosa convalescença, choraram-lhe de contínuo; os sonhos eram-lhe ainda suplícios de que despertava em brados e soluços; não obstante, a cura do amor, que chora, é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstringente de uma lágrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuráveis são os que desabafam em rancorosas explosões.

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Quincas Borba, de Machado de Assis

A mim, Rubião — protagonista de Quincas Borba — é o maior personagem de Machado de Assis. Já li diversos críticos a ressaltar a impotência dos personagens de Machado, a inabilidade para com a vida, a inaptidão, a apatia. Muito bem! E ademais não sofremos a dizer que em Rubião a figura humana se apresenta em amplitude, em precisão. Lendo Quincas Borba, vemos a filosofia sepultada pela paixão, a inteligência transfigurada pelo amor e, acima de tudo, Rubião a percorrer o íngreme declive pelo qual todo homem tem de enveredar. Finda o livro, cômico e melancólico, ridículo e triste, ambíguo como a vida sempre é. E se acaso deixa em nós alguma dúvida quanto a que sentir, o mestre trata de nos aconselhar:

Eia! chora os dous recente mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.

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A frivolidade de Eça de Queiroz

Deixemos falar Eça de Queiroz, que tantas vezes viu-lhe os romances acusados de frívolos:

Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:

— É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida — a paixão.

— Muitas outras coisas dão valor à vida… Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!

— E que somos nós? — exclamou Ega. — Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão…

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim…

— Creio que não — disse o Ega. — Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor…

— Resumo: não vale a pena viver…

— Depende inteiramente do estômago! — atalhou Ega.

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear… Não se abandonar a uma esperança — nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo… Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades. Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Ecclesiastes, em desilusão e poeira.

— Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo… Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correto, que é o único que se deve ter na vida.

— Nem eu! — acudiu Carlos com uma convicção decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém.

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