O pagode infame

Paga-te cá bum contigo
Pátria que pá dum doído
Tapa te tacou teu filho
Tapa que tapou teu grito

Gabas-te qu’aqui tá tudo dum
Primor tá tudo tudo bom?
Data cá — tudo tudo bom? —
Pátria pá do vudu cupom

Quando em que data te o pudor
Sumiu da lata e te cegou?

Boteco fecha-te o do tapa
Que tapou-te o grito
— O tapa que talou-te o brio —

O eco que escapou emancipado
Te pagou-lhe infindo
Escárnio qu’escapou
Do Tejo ao teu telecoteco

Cala ingrata que toldou-te o brilho
Empaca-te o tambor teu filho
Em tapa te tratou aceita e

Paga-te cá bum contigo
Pátria que pá dum doído
Tapa te tacou teu filho
Tapa que tapou teu grito pá!

(Este poema está disponível em Versos)

Soneto nacional

Mirando o tíbio céu azul-cobalto,
Senhor entoava o verbo alegre e vivo:
“Viver de nessa terra não me privo!
Feliz sou no Brasil, que adoro e exalto!”

Pois quando olhava ao céu, meditativo,
Foi quando lhe tomou um sobressalto:
Irrompe um homem, anuncia o assalto,
E aponta-lhe um revólver, agressivo.

“Arre! A carteira! Passa, seu maldito!
Senão te mato, velho desgraçado!”
De lisas mãos, pôs-se o senhor aflito:

“Não há dinheiro” — assim lhe respondeu…
Estoura o tiro! Sangue ao ar jorrado.
Com peito perfurado, assim morreu.

(Este poema está disponível em Versos)

Oculto o sol na turba e fria tarde…

Oculto o sol na turba e fria tarde,
Um crematório cospe um ser na rua;
O olhar diz tudo: a mente se contorce
E o peito quase estoura de amargura.
O aspecto denuncia o nulo sono,
O traje a infeliz solenidade,
O passo é lento, o torso oprime as pernas,
Fremente a mão direita, concentrada
A não deixar cair a pequenina
E delicada urna de madeira
Em que descansam lúridos resíduos
Da combustão completa da matéria
Que de si mesmo foi progenitora.
Vacila o movimento, as pernas fracas
Amparo pedem, sofrem de vertigem,
O tronco escora-se em qualquer parede,
Socorro os olhos buscam, quando encontram
Em frente duma praça, a poucos metros,
Vazio, um banco solitário, cinza,
Requisitando a preia da desgraça.

Sentando, o alívio. Pois suspira. As lágrimas
Querem sair, forçando os olhos fecham,
É público o local, respira fundo
E mira o céu nublado: pede forças.
A mão comprime o banco de concreto,
Os pés o chão esmagam, querem saia
Este ímpeto feroz que impele o grito,
Suspira novamente, engole o choro,
Ajeita-se no banco, baixa a vista,
Observa-se a dez metros vida doutra.
Não vai chorar! por honra! Quando ocorre
Que a mente infame, no auge do tormento
Repara quantos dentes exibidos.
Revolto, o raciocínio não compreende:
Sorrindo, dentro os porcos dum açougue?
Galinhas numa granja sanguinária?
Pois, sim! Sorrindo vivem, satisfeitos
Só vivem, não se espantam, não maldizem
A vida: aceitam, ou a não compreendem…
Que diferença faz? Estão sorrindo…

Na mão se encontra o pai após três meses
Agonizando em leito hospitalar;
Habita agora um artefato humilde
A vida, os sonhos, a completa essência
Do ser que, mudo, reduzido a cinzas
Morreu sem proferir a despedida,
Morreu em ilusão da própria cura:
Agora, em pó, privado da esperança,
Do verbo: morto! E morta a própria crença!
Fé grande que expirou incinerada!
Piedade, céus! Inexpressivos olhos
Fitavam a singela caixa fúnebre
Buscando qualquer mais que a morte fria,
Qualquer além, qualquer eternidade…
Pois o destino quis que a mão, enquanto
Emocionada a urna acariciava,
Quis que encontrasse, em base, um adesivo
Em cuja face, a tinta, escrito o nome
Do crematório, não do pai, e o preço
Do recipiente manufaturado…

Ultraje! A mente grita, o lábio aperta,
O corpo fatigado não partilha
Da agitação, só roga alguma trégua…
Arrancando o papel desrespeitoso
Enxerga o raciocínio claramente
Gravado na madeira o menosprezo
Qu’experimenta a sonhadora raça,
Infere diante do sarcasmo oculto:
Não há eternidade, não há nada!
Doença e morte! O resto é fantasia,
É a confissão da máxima impotência
A defrontar o bárbaro destino
Que anula o ser à derradeira célula!
Doença e morte: o meu destino! A vida
Conduz somente à dor e ao extermínio
E quando o corpo seco, lacerado,
Não pode articular qualquer resposta,
Não pode enobrecer-lhe a existência,
O mundo expõe: agora o ser é nada;
E, indiferente, avilta-lhe a memória.

Distingue o que há na urna: pó e vento,
E escuta internamente o Pai do Mundo
Em própria voz, zombando, escarnecendo
Do afeto destinado ao simples pote:
Um pote, um artefato de madeira
Confeccionado junto a outros mil,
O somatório reles de mão de obra
E lucro ao custo da matéria-prima,
Um pote ignóbil! Vê, sujeito estúpido:
O pote alberga adusto, morto, um pó
Que já foi ser humano, mas não é,
A vida que houve ali, já vanesceu.
Piegas! Infantil! Já foi! Resíduo
Da combustão é tudo o que sobrou:
Destroços batizados de Amanhã!…
Enforca a voz interna, rancoroso,
Levanta-se, mirando a pífia urna,
Atira-a no jardim detrás do banco
— A tampa cede, o pó derrama em solo —
E o passo enceta firme rumo à morte…

(Este poema está disponível em Versos)

A obsessão da técnica artística

Tomou-me a obsessão da técnica artística. O que prepondera na técnica? até que ponto ela importa? De súbito, vem-me à mente uma das cenas mais perfeitas que já li. Puxo da prateleira minha versão de Anna Karênina, que ali repousava, imóvel, desde 2017. Certamente, já não sou mais o mesmo: em cada um desses anos, o que me ocorreu foi uma evolução drástica em todos os quesitos. Mas me recordo bem da fortíssima impressão que tive da cena. Vamos ver. Levo poucos minutos para encontrá-la e, enquanto folheio a obra, reflito novamente na técnica: há uma dimensão estilística impassível de tradução; as páginas que tenho em mãos são uma tentativa de replicar em português o original russo. Localizando a cena, meu primeiro impulso é inspecionar-lhe a extensão: exatamente dois capítulos, que irrompem após Vronski despedir-se de Anna e, “inquieto”, estar “a tal ponto repleno do sentimento por Anna, que sequer cogitou que horas eram”. Lembra-se que disputaria uma corrida, e percebe-se atrasado. Então Tolstói passa a narrar Vronski, neste estado de tensão psicológica, a ser paulatinamente tomado da atmosfera de competição. O hipódromo lotado, a grande expectativa, tudo contribui para excitá-lo. Veste-se “sem pressa”, cuidando não perder o domínio de si. Quando chega ao local das provas, depara-se com um “mar de carruagens”, pedestres, soldados, e “palanques fervendo de gente”. Reconhece-lhe os adversários e, também, Anna: desta não se aproxima, a evitar a perda da concentração. O ambiente é pintado impecavelmente, mas o que mais impressiona é que a grande tensão psicológica que iniciou o capítulo só faz crescer: cada frase atiça, chacoalha os nervos de Vronski, que encontra a própria égua, também, agitadíssima, “a tremer como se tivesse febre”, com olhos “cheios de fogo”. Tudo isso no capítulo que precede a corrida ou, em outras palavras, no capítulo que descreve engenhosamente o aspecto emocional e psicológico da corrida. Ressoa uma voz ordenando a montada, e os dezessete competidores seguem, nervosos, ao local de inicio da prova, descrita em detalhes por Tolstói: nove obstáculos perigosos em pista elíptica de quatro verstas. Ao grito da partida, os animais põem-se em disparada. Vronski, que se sabe alvo de todos os olhares, larga atrás de alguns cavalos e luta contra a agitação de sua égua. Após o primeiro obstáculo, “domina totalmente a montaria” e ultrapassa velozmente os adversários, ficando atrás apenas de seu principal competidor. Todos estes movimentos são narrados magnificamente: a aceleração, o tropeio dos cavalos, os saltos por cima dos obstáculos e, principalmente, o psicológico de Vronski, com o brio irritado pela segunda colocação. Não leva muito para que ultrapasse o seu adversário e dispare na dianteira. Eleva-se sobre o obstáculo mais perigoso mantendo o compasso, ritmado, sob os gritos de “Bravo!”. A quatrocentos metros do fim da prova, sabendo já tê-la vencido, Vronski maneja as rédeas a fim de chegar bem à frente dos demais. Aumenta a tal ponto a velocidade da montaria que voa sob o último obstáculo e, não conseguindo acompanhar a velocidade da égua, quebra-lhe a espinha deixando-se cair sobre a sela. Perde a corrida; médicos deliberam abater o animal com um tiro. O evento, para Vronski, fica-lhe “por muito tempo como a mais penosa e torturante recordação da sua vida”. Termino o capítulo com uma impressão tão forte, tão viva como a de minha primeira leitura. A tradução não se permite ornatos sintáticos: e não fazem falta nenhuma! A cena é encadeada com maestria: o arco de ação, desde o gatilho inicial ao desenlace da cena, encerra uma tragédia particular, que pode ser lida separadamente da obra sem o menor problema. A narração direta, objetiva, estimula o psicológico a cada parágrafo, auxiliada por adjetivos e elementos pictóricos carregados de apelo emocional. Há técnica, isso é evidente: a construção foi diligentemente planejada, estimula com potência e progressivamente o sentimento no leitor. Mas tento pensar em que, exatamente, essa cena se destaca de todas as outras. Onde está o brilho? por que configura o exemplo da grande arte? como é possível que, mesmo numa tradução, tenha um efeito tão forte? E inclino-me a pensar que o grande, na arte, reside naquilo que é escrito em linguagem universal…