Uma feira de personagens culturais

Trecho de Luiz Felipe Pondé em seu Ensaio Teologia do niilismo – A inteligência do mal, escrito originalmente para a revista russa Dostoievski y mirovaia kultura e disponível em seu Do pensamento no deserto:

Religião e teologia não são áreas do conhecimento com o mesmo valor epistêmico que biologia ou sociologia. Evidentemente que livros continuam a serem escritos em ambas as áreas, mas livros não são sinais claros de valor epistêmico. Mesmo a filosofia da religião perdeu muito com a chamada morte da metafísica. O foco dissolutivo deste fato se encontra na inconsistência de qualquer forma de conhecimento que não relacione de modo produtivo a dedução racional com a indução empírica. É evidente a relação com a ciência moderna como referencial. Mesmo que muitos intelectuais “brinquem” de pós-modernos afirmando que tudo é “simulacros ou narrativas”, aviões voam e transplantes de órgãos acontecem seguindo as “convenções” da física e da biologia. Mesmo que descubramos que as mesas são constituídas de “espaços vazios”, continuaremos a colocar pratos em cima dela sem que caiam “no vazio quântico”. Além dessas “brincadeiras quânticas”, o fato é que a insegurança das construções teológicas (fruto da dúvida cética científica) é obrigada a enfrentar não só o fracasso da metafísica diante do tribunal da razão sensorialmente sustentada (drama mais ligado às ciências duras ou naturais), como também a redescoberta da sofística, agora encarnada na antropologia cultural (realidade mais típica das ciências humanas): “de qual deus você está falando?” Podem existir quase tantas teologias quanto restaurantes étnicos. É como se com a morte da metafísica, o céu tivesse ficado vazio, e sobrou apenas uma feira de personagens culturais.

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Resposta a Augusto dos Anjos

Leio o soneto de Augusto dos Anjos, intitulado Perfis chaleiras:

O oxigênio eficaz do ar atmosférico,
O calor e o carbono e o amplo éter são
Valem três vezes menos que este Américo
Augusto dos Anzóis Sousa Falcão…

Engraçado, magríssimo, pilhérico,
Quando recita os versos do Tristão
Fica exaltado como um doente histérico
Sofrendo ataques de alucinação.

Possui claudicações de peru manco,
Assina no “Croquis” Rapaz de Branco
E lembra alto brandão de espermacete…

Anda escrevendo agora mesmo um poema
E há no seu corpo igual a um corpo de ema
A configuração magra de um 7.

Respondo:

No vasto cosmos multiplanetário
Encontra-se um sujeito num recinto:
Lhe ferve a testa, falta-lhe o instinto,
Pois fisga verbos frente a um dicionário.

Mas que vergonha! Artistinha ordinário!
Enquanto escreve bebe vinho tinto…
Acordo. É sonho! E m’escapou, pressinto,
Outro enigma do meu imaginário…

Mas eis que vejo a cena por completo:
Eu mesmo empunho a caneta, risonho,
E firmo logo abaixo do soneto:

Luciano dos Anzóis Sousa Falcão.
É isso! É isso! E a moral deste sonho:
Também não sou ninguém, querido irmão!

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Anoitecer, de Raimundo Correia

Outro belo soneto de Raimundo Correia:

Esbrazea o Occidente na agonia
O sol… Aves em bandos destacados,
Por ceus de ouro e de purpura raiados,
Fogem… Fecha-se a palpebra do dia.

Delineam-se, além, da serrania
Os vertices de chamma aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancholia…

Um mundo de vapores no ar fluctua…
Como uma informe nodoa, avulta e cresce
A sombra á proporção que a luz recúa…

A natureza apathica esmacce…
Pouco a pouco, entre as arvores, a lua
Surge tremula, tremula… Anoitece.

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A vida não parece suportável senão às naturezas leves

Trecho de Emil Cioran, em minha tradução:

Sem a faculdade de esquecer, nosso passado pesaria de um modo tão esmagador sobre nosso presente que não teríamos força para abordá-lo um só instante, muito menos nele embarcar. A vida não parece suportável senão às naturezas leves, precisamente àquelas que não se recordam.

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