O que se chama “sociedade” exige a representação de um papel

O que se chama “sociedade” exige, de todos, a representação de um papel. E a liberdade inicia-se após essa recusa. Brilhantemente exposto por Jung está o choque irreconciliável entre o psicológico coletivo e o individual, que leva o ser humano a uma entre duas alternativas: ou reprimir a própria individualidade e tornar-se uma ovelha socialmente aceita, ou romper com a sociedade e sofrer na pele as consequências desta decisão. Não há como fugir, o existir da “sociedade” induz uma postura ativa, senão de anuência, de recusa. Assim divisamos qual a decisão mais fácil e infinitamente mais lucrativa. Por outro lado, resta evidente quais seres humanos são intelectualmente dignos de respeito — e quais não.

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No quarto, só, é noite e a luz apaga…

No quarto, só, é noite. A luz apaga,
O crânio pousa, a placidez não vem…
Por que não dorme, enfim? Não sabe bem,
Mas quando deita sente arder a chaga.

Fechando os olhos, a consciência esmaga,
Tratando-lhe a tristeza com desdém,
Qualquer esforço é vão, nada detém
O espectro que faz toda noite aziaga.

Não há permita-se erro ser sepulto,
Perdura a culpa e o arrependimento
Jamais será remédio pro tormento…

Não há cura pro mal, sequer indulto,
Errando um ser condena-se ao suplicio,
E não sai o remorso nem co’o exício…

(Este poema está disponível em Versos)

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A poesia lírico-amorosa está condenada ao desaparecimento

A poesia lírico-amorosa, senão morta, está condenada ao desaparecimento. Essa é, sem dúvida, a conclusão que berra após uma observação apurada das últimas décadas. O que ocorreu não foi uma mudança no caráter dos relacionamentos, mas um sepultamento definitivo de quanto servia de inspiração aos versos que já nem comovem. Poderia citar o pensamento corrente, a psique socialmente aceita pregadora do desapego. Mas esta é demasiado frágil, só aplicável enquanto máscara da psique individual e só relevante enquanto manifestação da hipocrisia. O que ocorre, porém, é que as pessoas tornaram-se pratos de um cardápio sempre online e acessível a um toque. Distância, medo da perda e, principalmente, carência de meios e opções sempre atuaram como tonificadores de um relacionamento, a despeito das aparências. O lamento, num verso, não é senão a expressão do afeto por alguém que aparenta especial e insubstituível. Hoje, tudo isso acabou. E se o século vigente aparenta evoluído, veremos como reagirá quando exposto o terrível e imenso vazio aberto pela perda em massa dos vínculos afetivos — outrora fulcros formadores de sentido, — pelo endosso de soluções falsas e pela desumanização gradual do ser humano. Imagino crianças assustadas entupindo os consultórios psicológicos…

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Vivem pouco justamente os que aparentam viver muito

Bato estas notas, sempre, em ambiente estático, em completa solidão. Tudo rigorosamente imóvel, exceto meus dedos assanhados. Há pouco, pensei em Fernando Pessoa. Para o meu espanto, ele apareceu vivo, vivíssimo do meu lado. Como? É o que eu gostaria de saber. Havia pensado, pouco antes, em escrever o seguinte: “A existência só me é justificável como resposta aos autores que li, como a continuidade do que eles começaram”. E concluiria que, apesar de mortos, eles não morreram. Então Pessoa irrompe no meu quarto. É curioso: há um século atrás, ele estava, como eu, encerrado num quarto em qualquer canto de Lisboa, refletindo em solidão. Sabia ele da potência dos próprios versos? que resistiriam, vigorosos, à tirania do tempo? Sabia… o Pessoa sabia… E, naturalmente, aos olhos do mundo, encerrado num quarto, o poeta “deixava de viver”. Pergunto: e agora, e para o resto da eternidade, quem vive e viverá mais: o sujeito que “vivia”, ou o poeta, que “deixava de viver”? Um século depois, Pessoa, rompendo a barreira do tempo e do espaço, encontra-se em meu quarto. E se abro sua Ode marítima, serei tomado de uma euforia real e fortíssima, mais viva que qualquer outra sensação que uma pessoa (com “p” minúsculo) contemporânea poderia me gerar. E aí está o óbvio: vivem pouco — muito, muito pouco — justamente os que aparentam viver muito, aos olhos do míope convencional…

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