Por que, maligna Vida, agir não deixas…

Por que, maligna Vida, agir não deixas
A desumana Morte já no início?
Por que germinas no homem esperanças
A convertê-las todas em suplício,
A convertê-las todas sempr’em queixas?
Por que camuflas-te em vãs seguranças?
Por que te tornas palco de vinganças?
Não compadeces vendo o sofrimento?
Ignoras o tormento
Que amarga-o a matéria enquanto vive,
Antes que a Morte prive
A boca de externar o sentimento?
Acaso agrada-te o pulsar da dor?
Sorris ao permitir que a Morte crive
O peito e a mente humana de terror?
Quem vê-te a essência mira-te em pavor!

Pois quem avista o Fado, mesmo tarde,
Encontra-o co’o malhete e a folha escura
À Morte despachando o fim secreto,
E em vão pragueja, em vão a si conjura
O espírito qu’em longo pânico arde
Ao ver-se condenado a ser objeto
Do mais atroz e horrífico decreto:
“Tudo o que fiz não teve utilidade!
— O desespero invade —
Sou alvo de uma besta predatória
Que arrasa até memória,
E nada brida-lhe a feroz maldade!
A dor que sinto nada significa,
Mesmo qu’imensa a angústia é irrisória!
Oh, maldição! Oh, terra infausta! Oh, zica!
Tenho de ser em chão que nada fica!”

Tortura intensa que jamais s’esgota,
Instala-se expulsando o sedativo,
Faz reino em que só o desespero impera,
Transforma o juízo em ferimento vivo.
Como sorrir se não há nem remota
Expectação matar de a cruenta fera
E a desintegração é certa à espera?
Como mirar sem choro o fiel amigo
Prevendo-lhe o castigo?
“Em desamparo irás deixar os teus,
Quiçá sem nem adeus,
E a obra tua irá sumir contigo…
Não há nada a fazer contr’esse mal,
É este o fado dos filhos de Deus:
Acometidos serem da mortal
E ingrata foice no dia fatal…”

Como, meu Deus, conter o forte pranto
Ante a ternura da face querida
Sabendo-a, como a si, sujeita à pena
Que tranca numa cela onde a saída
Exige a extinção total! E quanto
Não dói saber que o tetro Fado ordena
A mortificação e o ser condena
A perder totalmente o movimento!
Oh, Fado lazarento!
Qu’extingue a vida em sonhos incompletos,
Tratando como insetos
O ser que morre e o que rompe em lamento…
E pior sofrer com avançada idade
E a mente cravejada dos afetos
Exterminados, e ver a verdade:
Em vida quanto é bom vira saudade…

Mas também a saudade é condenada:
Se não míngua co’o tempo, vai embora
Acompanhada da matéria triste,
Acompanhada da mente que chora!
Oh, maldição rumar consciente ao Nada
E ver que o próprio choro não resiste:
Em vida morre tudo quanto existe!
E a mente desditosa enquanto acesa,
Denega em si a tristeza,
Revolta-se e o que aflige-a elimina,
Aviando na faxina
Aquilo que na vida tem beleza!
Quer a cabeça ser feliz e forte,
Mas é-lhe a infelicidade a sina…
Sofrer! Mas não pra sempre, pois, por sorte,
A dor acaba, visto existe a Morte…

Oh, desespero! A vida suportar
É empanturrar-se do insignificante,
Empanturrar-se até grande modorra,
Fazendo com que a mente não s’espante
E o raciocínio deixe de falar!
Pois do contrário é defrontar masmorra
Sem um único amigo que socorra
O pensamento do desassossego,
Gritando em pleno ofego,
Deliberando a solução terrível,
Mas ela é impossível!
Pois a coragem curva-se ao apego
E encobre-se tolhida da esperança,
Que nunca entrega nada de acessível
E vende o paraíso sem fiança!
Mas também ela um dia a Morte alcança…

Responde, Vida! Por que não te opões
Vendo-te a converter em dor intensa?
Por que a tortura? Por que suportá-la?
Por que mortificar o ser que pensa?
Qual a razão de tantas aflições?
Como deter o monstro que apunhala?
Por que apodreces morta numa vala?
Por que não cravas-te o que é nobre e terno
Na imensidão do eterno,
Mostrando haver no efêmero animal
Qualquer coisa imortal?
Por que não salva a mente deste inferno?
Há algo em ti que a Morte não liquida?
Por que não dás um mínimo sinal?
Há algo dure após a despedida?
Um sim seria tão mais belo, Vida…

(Este poema está disponível em Versos)

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São os humoristas quem melhor afagam a dor humana

Mais do que qualquer entidade filantrópica, são os humoristas quem melhor afagam a dor humana. E a justificativa é simples: o riso é remédio eficaz, barato e inesgotável. Humoristas, se bons, ensinam a rir das piores misérias, consolam diante do terrível, entregam prazer quando parece impossível. Humoristas desvendam o óbvio: na vida, absolutamente tudo é passível de piada — e as melhores brotam exatamente de onde nos parece absurdo extraí-las. Ademais, atacam a víbora que nenhuma entidade filantrópica é capaz de combater: a vaidade. Por isso, entristece vê-los trabalhando quase sempre alvejados por pedras, não raro acabando destruídos pela massa de idiotas incapazes de enxergar a dimensão do próprio ridículo. Mas não é novidade: os grandes quase sempre acabam alvo da fúria dos imbecis. Pois avante, ídolos, benfeitores da humanidade! E vosso riso perdurará quando as mãos que vos atacam já se tiverem convertido, inertes, em pó!

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O papel dos críticos literários na formação do intelectual

Uma das decisões fundamentais e primárias na trajetória de um intelectual é decidir pelos guias que utilizará para elaborar a própria rota e auxiliá-lo a apreender o que verá pelo caminho. Privado do amparo, o longo percurso apresenta-lhe obstáculos quase insuperáveis. Por isso, antes de percorrê-lo, é necessário estudá-lo, a definir o melhor trajeto, ou o trajeto que se ajusta melhor aos próprios objetivos. O que deseja ver? Eis outra questão importante: as possibilidades são imensas… Por isso, o papel dos críticos literários é nobilíssimo. São eles quem desvendam sendas alternativas — muitas vezes extremamente desagradáveis — e entregam o resumo de suas perambulações. Onde a luz? Onde a escuridão? Sem eles, encontramo-nos em mata fechada, perdidos e desamparados. Mas como escolher os próprios guias? Nova difícil questão. O bom guia deve entregar segurança e despertar admiração. A seguir alguém, devemos ter nele mais confiança que em nós mesmos. Assim, um grande crítico deve reunir, além de um vasto conhecimento, qualidades pessoais atípicas, do contrário será menor em sua função. Como o artista, deve o crítico ser observador, detalhista, curioso; deve buscar intencionalmente o diferente, enveredar justamente pelas rotas que aparentam as mais medonhas; deve ser justo, receptivo ao contraditório, disposto a abandonar cada uma das próprias convicções; deve ser capaz de enxergar méritos onde parece não havê-los e, acima de tudo, deve ser capaz de fazer a dificílima distinção entre o melhor e o mais agradável. Só assim poderá dizer, de consciência limpa e em palavras justas, qual cuida a melhor rota a ser percorrida, ou quais rotas levam a quais paradeiros; do contrário, será um condutor desleal, um manipulador e, não raro, evidenciará no trabalho os defeitos do próprio caráter. Assim, como guiados devemos responder a pergunta: “Por quem desejamos ser influenciados?” — e a resposta, a despeito das aparências, também dirá muito sobre nós.

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Democracia, um romance americano, de Henry Adams

Primeiro, o professor. Palavras de Otto Maria Carpeaux sobre Henry Adams:

Enfim, Henry Adams, o último, volta para a pátria, e já não a reconhece, esse país de milionários incultos e políticos corruptos que se servem de slogans democráticos para explorar as massas amorfas. A primeira reação de Henry Adams foi o romance Democracy, publicado sob anonimato; panfleto que poderia ser igualmente interpretado como pré-marxista ou pré-fascista. Mas Henry Adams não foi e nunca será homem das decisões práticas. É observador. Escreveu a história dos Estados Unidos na época de Jefferson e Madison, para descobrir na raiz as causas dos males. É historiografia puramente política e administrativa. Assim como os seus personagens parecem menos inteligentes do que são, Henry Adams, muito bem educado, sabia dissimular na companhia dos seus pares a desilusão profunda de um poeta, preferindo parecer um pesquisador de arquivos. Ao lado da torre de Babel dos negócios de trustes e da política imperialista, Adams construiu a sua torre particular que parecia a de um parnasiano. Aconteceu que a torre de Henry Adams se levantou tão alta e até mais alta do que os arranha-céus de Nova Iorque; e do alto dela abriu-se um panorama tão vasto da história humana que o Oceano Atlântico lá embaixo desapareceu como se fosse um lago insignificante, e do outro lado apareceu a Europa que os seus antepassados puritanos tinham deixado, e no fim do horizonte outras torres, as das catedrais góticas, monumentos de uma civilização de harmonia entre a arte e a religião, negada aos filhos da América. Em visão apocalíptica, Adams viu os arranha-céus americanos condenados a tornar-se, um dia, ruínas de uma civilização feia e falsa.

Lá vão algumas linhas sobre esse tema detestável: a política. Detestável e simplíssimo: para entender de política, basta uma consulta aos moralistas franceses ou ao filósofo florentino. O sujeito que entende de natureza humana compreende facilmente a política; o sujeito versado em filosofia política, geralmente, não faz ideia do que seja a política. E Henry Adams, com efeito, entende do assunto: em Democracia, um romance americano, penetra o psicológico de políticos democráticos, desvelando-nos o que é uma democracia. Madeleine Lee, a protagonista, decide mover-se a Washington após perder o marido. O objetivo: conhecer, a fundo, o regime democrático americano. Madeleine delibera dedicar o resto de seus dias para obter a resposta: a democracia é virtuosa, quando em comparação a outros regimes? seria a América a representação do progresso? Então conhece Silas P. Ratcliffe, senador que almeja e apresenta-se apto à presidência: em suma, um grande político. Perguntarão: “Um grande político de qual vertente ideológica?”. Mas aí está o que Henry Adams nos ensina: “ideologia”, em política, não é senão uma ferramenta de marketing e é efetiva como indutora da ação política somente enquanto aparato de manipulação das massas. O que move a política é a vaidade, o interesse, o orgulho e a ambição. Política é sobre poder, sobre exercê-lo e desejá-lo acima de todas as coisas. Não há virtude, nem vício, nem boas ou más intenções nessa ciência: existem ferramentas que contribuem para a construção de uma imagem, ferramentas que conduzem ao poder. E o grande senador Ratcliffe mostra-nos o que é um político profissional: é o modelo humano degenerado, amputado da consciência e escravo da ambição. Vive um teatro interminável, mente até ao espelho, tem a própria imagem acima da própria autonomia, existe em função de um dever de ascensão. Todas as relações pessoais de um político, até as mais íntimas, exercem um papel dentro de um projeto de poder, toda a existência é-lhe moldada em redor de um desejo insaciável, ignorado pelos mais estúpidos e perfeitamente compreendido pelos que se orgulham de ser vassalos do próprio ego. Respeitado por muitos, o político regozija-se, sente-se importante. E que faz a democracia, senão validar-lhe a conceituação que tem de si mesmo? O ocupante de um cargo democrático tem-lhe pregado ao nome o selo da aprovação popular; o juízo lhe não é demasiado absurdo quando se acha superior aos demais e à moral, “for democracy, rightly understood, is the government of the people, by the people, for the benefit of Senators“. Na democracia, o vício é amparado pelo regime, e o regime apresenta-se como a vontade geral. Doce ilusão de progresso… Belo engodo dizer que, na democracia, o regime é blindado contra os abusos da ambição humana, que é virtuoso porque descentralizado e melhor que os outros porque criado a conter-lhes os defeitos. Democracia, um romance americano é a imagem da desilusão de alguém que, sinceramente, desejou conhecer a fundo esse regime: “she had got to the bottom of this business of democratic government, and found out that it was nothing more than government of any other kind“. E terminou sequiosa das pirâmides do Egito…

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