A convivência é um pacto de falsidade

Deparo-me com o problema, percebo-o o mesmíssimo de sempre. Volto a mim mesmo. Há dois anos, lançava a única série televisiva que produzi. Há dois anos, um personagem meu dizia:

— A convivência é um pacto de falsidade. Uma dose mínima de sinceridade atira a convivência pro espaço. O sujeito pode ser um idiota, ou um cínico, não há terceira opção.

E ouvia a resposta do amigo:

— Convivência é vestir a roupa e deixar o dinheiro em cima da cama.

Por que sempre a mesma pergunta?…

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Ao abrir um livro, não assino um contrato

Lembro-me do dia em que fiz esta magnífica descoberta: ao abrir um livro, não assino um contrato comprometendo-me a lê-lo até o final. Logo brilhando a ideia, transferi, sorrindo, o volume das mãos à prateleira. Desde então, tenho exercido meu direito com frequência cada vez maior. As obras variam, os motivos também: por vezes, o desprezo fala; por outras, grita minha própria inaptidão. E, servindo-me desta utilíssima técnica de pressionar com as mãos a capa contra o verso do livro, aprendi que algumas obras exigem o momento, exigem um preparo adequado (em especial quanto ao domínio do idioma) para se mostrarem úteis ou agradáveis. Assim, fechando-se um livro pode-se poupar tempo, evitar um desgaste desnecessário e impedir que uma experiência futura gratificante queime-se por uma pressa injustificada.

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Só, de Olavo Bilac

Vamos deste belo soneto de Olavo Bilac:

Este, que um deus cruel arremessou á vida,
Marcando-o com o signal da sua maldição,
— Este desabrochou como a herva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida…
Som constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos máos, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida á toa no caminho!
Roto casco de náo, desprezado no mar!

E, arvore, acabará sem nunca dar um fructo…
E, homem, ha-de morrer como viveu: sósinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!

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ABC da literatura, de Ezra Pound

Leio ABC da literatura, de Ezra Pound e encontro, entre uma exposição virtuosa e trechos lúcidos de um grande intelectual, o óbvio aparentemente ignorado:

Music rots when it gets too far from the dance. Poetry atrophies when it gets too far from music.

Que dizer? A busca por originalidade e novos meios de expressão na literatura várias vezes desaguou numa descaracterização da própria arte literária ou, em outras palavras, numa estética pior. Muito em decorrência de uma visão obsessiva no estabelecimento de leis, as diretrizes, as ferramentas capazes de dotar a construção literária de um caráter artístico caíram em desprezo, tornaram-se “antiguidades”. O problema, entretanto, só faz fugir do essencial: por que o arco de ação na dramaturgia? Por que a métrica na poesia? Porque são instrumentos que, se utilizados com destreza, diferenciam a arte literária do discurso falado, tornando-a esteticamente superior; são instrumentos capazes de entregar unidade à construção artística, capazes de produzir efeitos expressivos interessantes. O artista que os não conhece não será capaz de estabelecer critérios qualitativos para a própria arte, ou seja, não será capaz de melhorá-la, sequer avaliar sua qualidade estética, manejando algo de que ignora a substância. Obviedades, obviedades, conquanto extremamente necessárias…

The bad draughtsman is bad because he does not perceive space and spatial relations, and cannot therefore deal with them.

The writer of bad verse is a bore because he does not perceive time and time relations, and cannot therefore delimit them in an interesting manner, by means· of longer and shorter, heavier and lighter syllables, and the varying qualities of sound inseparable from the words of his speech.

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