História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux

História da literatura ocidental, esse colosso de quase 3 mil páginas, é, simplesmente, um monumento imortal erigido em língua portuguesa e publicado no Brasil. O austríaco Otto Maria Carpeaux, que adotou nossa pátria e pôs-se a aprender nosso idioma já na meia-idade, deu às letras nacionais o que brasileiro algum jamais dará. Pode-se dizer, sem medo do erro, que foi Carpeaux o maior erudito brasileiro de todos os tempos. E, se temos no jardim esse colosso único, impressiona que nós, brasileiros, não demos o menor valor. Palavras de Carpeaux que prefaciam a primeira edição da obra dão ideia da magnitude desta História da literatura ocidental:

Estudaram-se todas as literaturas românicas e germânicas da Europa e seus ramos na América do Norte e do Sul; as eslavas e outras da Europa oriental; e, naturalmente, as literaturas grega e neogrega. (…) Foram estudados, em suma, mais de 8.000 autores. Mas a obra não tem pretensão nenhuma de ser um dicionário bibliográfico completo.

Modéstia… O estudo empreendido por Otto Maria Carpeaux e publicado em 1959 é único a nível mundial. É o que diz, também, Olavo de Carvalho, em excelente ensaio que prefacia a edição da Topbooks de Ensaios reunidos, outra obra de Carpeaux:

O homem de quem estamos falando é autor da única história da literatura jamais escrita na qual a sucessão das idéias e criações literárias no Ocidente, de Hesíodo a Valéry, aparece como um movimento contínuo que, por baixo da variedade desnorteante das suas manifestações, não perde jamais a unidade de sentido.

Que dizer? Penso em Carpeaux e me espanta o silêncio. Não se fala em Carpeaux, não se comenta sobre o homem de maior relevância na crítica literária nacional. Hoje, já estamos em distância que nos permite o juízo imparcial: Carpeaux, dentre todos os críticos, foi quem prestou o maior serviço às letras nacionais. Nada em português se compara à sua História da literatura ocidental.

História da literatura ocidental é capaz de dotar qualquer estudante de um conhecimento abrangente e preciso sobre os principais autores de mais de vinte séculos de literatura. É capaz de guiar um plano de estudos por décadas. E engana-se quem pensa que Carpeaux tão somente apresenta os autores e insere-os no contexto em que produziram suas obras; Carpeaux critica, transita com extrema argúcia por entre as correntes de pensamento mais diversas, pelos variados estilos e variadas concepções estéticas, analisa biografias e traça a evolução dos autores, insere as obras no contexto em que foram produzidas mostrando-nos, por fim, o peso histórico de cada autor segundo o seu julgamento.

Mas onde estão, por exemplo, as traduções dessa obra imensa? Longe, muito longe… Digo e pareço sonhar. Carpeaux não aparenta sequer consolidado no Brasil. Não atraiu sequer o interesse de biógrafos. Pergunto: o que estamos esperando? que surja alguém mais relevante a escrever sob o sol brasileiro? alguém de cultura superior? Ah, claro… então esperaremos… esperaremos, talvez, por muitos séculos, talvez para todo o sempre…

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual enorme. Deu ao Brasil o que nunca tivemos, o que sempre nos faltou. Será que podemos, hoje, prescindir de Carpeaux? virar as costas à sua História da literatura ocidental?

É uma escolha. Contudo está, diante de nós e muito bem construída, a ponte para integrar nossa literatura a todas as culturas de todas as épocas. Cabe-nos, porém, a decisão de atravessá-la — ou, é claro, continuar como somos: irrelevantes no cenário mundial.

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Deixar que o absurdo verta

Toda vez que me espanto de algo que escrevo, reflito: ficará do jeito que está! Pois se altero, censuro-me, encerro minha imaginação entre grades, limito meu horizonte criador. E se dou vazão ao absurdo, ao espantoso, executo exatamente o contrário, estendendo-me os próprios limites, alargando-me a dimensão geratriz. Assim me acostumei a desgostar de meus textos; sumariamente, aprendi a jamais usar do bom senso para censurar-me a expressão.

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Sobre a peste

Como habitual, a contingência expondo a fragilidade do homem, desnudando-o por completo. Seus reflexos naturais: o medo e o desespero. Assim, nenhuma novidade: cadáveres sempre assustaram. Entretanto, talvez a nova peste tenha exposto um fresco fenômeno de massa: a dependência do trabalho. Digo isso por ver os que, enclausurados à força, gritam ao ver-se-lhes a vida esvaziada de sentido, quer dizer: se não há o trabalho, que resta ao homem?

Versamos aqui sobre uma classe que, ao menos, tem na vida algum propósito… Mas aí está o que a peste ilumina, a despeito das evidentes fragilidades econômicas e sociais modernas: a vida orientada à profissão envolve um risco óbvio, agravado paulatinamente pelo tempo, de converter em doença fatal o vazio das mãos que se lhe veem escorrer pelos dedos o trabalho. Mãos que, aposentadas, poderão encontrar numa corda o seu único alívio.

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Ortodoxia, de G. K. Chesterton

Entupo-me a misantropia de quitutes e ela, em resposta, engorda. Assim completo mais um ano sozinho, sorrindo, e desta vez com um volume de Chesterton nas mãos.

Chesterton… Tivesse-o lido aos vinte, talvez o teria idolatrado… Mas assim são as coisas e bom que assim sejam! Eis que, atento às páginas de Ortodoxia, irrito-me. Em seguida, porém, exalto-me. E o resumo de meu juízo, após a calmaria das reflexões, é este: grande leitura! Pois é isso o que deixam as grandes leituras: fortes impressões.

Então vamos, agora, esmiuçá-las, expor o que me agitou nesta grande obra. Chesterton começa:

The men who really believe in themselves are all in lunatic asylums. (…) If you consulted your business experience instead of your ugly individualistic philosophy, you would know that believing in himself is one of the commonest signs of a rotter. Actors who can’t act believe in themselves; and debtors who won’t pay. It would be much truer to say that a man will certainly fail, because he believes in himself. Complete self-confidence is not merely a sin: complete self-confidence is a weakness.

Parecem palavras retiradas dos meus pensamentos. Entretanto, faço a nota: quão distante está Chesterton dos cristãos atuais! A modernidade — cristãos inclusos — está contaminada até a unha deste sentimento estúpido denominado por Chesterton como self-confidence. Quando a sabedoria, queiram ou não, começa exatamente em self-distrust.

Há, hoje, uma confiança difusa, seja no homem, seja no futuro, que nos cristãos se manifesta através da esperança indiscriminada. O cristão comum de nossos dias não hesita, nem por um único segundo, a respeito do que o futuro lhe reserva ou a respeito das próprias possibilidades. O que não é sinal senão de sua absolute weakness

Outro trecho virtuoso:

Imagination does not breed insanity. Exactly what does breed insanity is reason. Poets do not go mad; but chessplayers do. Mathematicians go mad, and cashiers; but creative artists very seldom.

Que é que conduz à insanidade? A obsessão em encontrar todas as respostas, em possuir controle absoluto sobre o meio. Por isso um matemático, um cientista, muitas vezes acaba incapaz de perceber-lhe a própria insignificância, a própria vulnerabilidade, a limitação de seus meios de ação e, considerando-se capaz de decifrar todas as variáveis, enlouquece, colapsa, pois as possibilidades humanas são, se muito, simplesmente limitadas.

Chesterton prossegue, em franco ataque ao positivismo moderno:

In so far as religion is gone, reason is going. For they are both of the same primary authoritative kind. They are both methods of proof which cannot themselves be proved. And in the act of destroying the idea of Divine authority we have largely destroyed the idea of that human authority by which we do a long-division sum.

Agrada-me essa franqueza. Chesterton ainda ressalta, em sua famigerada sentença: o problema na negação de Deus é o que se coloca em seu lugar. Fatalmente, crer nas possibilidades humanas é de uma infantilidade sem-par.

Pois bem. Eis que Chesterton começa a irritar-me. Já me indisponho com meia palavra de demagogia, meio verbo de incentivo à ação política… E se cultivo a resignação e o silêncio, então Chesterton pinta-me, subitamente, como o mais desprezível dos seres.

E vejo em Ortodoxia o que a mim, sem dúvida, é a face mais detestável dos cristãos: o maniqueísmo. Assim como sempre me causa fastio escutar de alguém o porquê de sua ideia ser a mais sensata do universo, passo a enfastiar-me da arrogância das palavras de Chesterton.

Ele começa atacando os estoicos:

Marcus Aurelius is the most intolerable of human types. He is an unselfish egoist. An unselfish egoist is a man who has pride without the excuse of passion.

Se não são como nós, pois como são odientos! E Chesterton, guiado pelas próprias convicções, classifica como os mais detestáveis aqueles que se negam a agir, a lutar, a participar ativamente da sociedade.

O que Chesterton faz, sem rodeios, é classificar a mim mesmo como um sujeito intolerável — justo no meu aniversário?… — E percebo que é impossível a nossa compatibilidade: Chesterton quer me convencer de sua razão e impelir-me à ação; eu não tenho o menor interesse em convencê-lo de nada e só quero um pouco de paz, distância e silêncio.

Chego a fantasiar, por um momento, o seguinte subtítulo para a obra: “Why me and everyone who is like me are the best human beings on the face of the earth and why everyone else who is not like me and does not think like me are intolerable and inferior”. E ouço a irônica e insuportável réplica: “Exactly. Do you have a better way to defend your beliefs?“.

Chesterton prossegue:

On the other side our idealist pessimists were represented by the old remnant of the Stoics. Marcus Aurelius and his friends had really given up the idea of any god in the universe and looked only to the god within. They had no hope of any virtue in nature, and hardly any hope of any virtue in society. They had not enough interest in the outer world really to wreck or revolutionise it. They did not love the city enough to set fire to it. Thus the ancient world was exactly in our own desolate dilemma. The only people who really enjoyed this world were busy breaking it up; and the virtuous people did not care enough about them to knock them down. In this dilemma (the same as ours) Christianity suddenly stepped in and offered a singular answer, which the world eventually accepted as THE answer. It was the answer then, and I think it is the answer now.

Ignoremos o justo mérito concedido ao surgimento do cristianismo. A partir deste ponto no livro, Chesterton passa a incentivar a ação, justificando, inclusive, a “violência” cristã. E o faz exaltando a plebe, em atitude que, novamente, traça uma clara linha entre nós. Simplesmente não suporto a convivência com alguém que me exige concordância integral.

Novas pedras atiradas contra mim:

By insisting specially on the immanence of God we get introspection, self-isolation, quietism, social indifference — Tibet. By insisting specially on the transcendence of God we get wonder, curiosity, moral and political adventure, righteous indignation — Christendom. Insisting that God is inside man, man is always inside himself. By insisting that God transcends man, man has transcended himself.

Moral and political adventure, righteous indignation… Quantos cadáveres seriam poupados sem semelhantes exaltações… Mas não prossigo: abstenho-me de convencer Chesterton. Sinto-me absolutamente desmotivado após vê-lo traçar o povo como a representação da prudência e da sabedoria.

A mim, o menor populismo já é repugnante. Exaltar a virtude popular é comprar a aprovação às custas da independência. Mas não taxo Chesterton de falso ou ardiloso; seria extremamente injusto. Entretanto, neste ponto, vejo mais prudência em Zaratustra:

É no deserto que sempre viveram os verídicos, os espíritos livres, senhores do deserto; mas nas cidades, habitam os sábios bem nutridos e célebres – os animais de trato.

Pois são eles que puxam sempre, como os asnos, as carretas
do povo.

Oportuno tocar em Nietzsche. Chesterton faz o seguinte juízo do poeta:

Nietzsche is truly a very timid thinker. He does not really know in the least what sort of man he wants evolution to produce. And if he does not know, certainly the ordinary evolutionists, who talk about things being “higher”, do not know either.

Minha observação: Nietzsche sabia exatamente qual tipo de homem desejava que fosse produzido; e esse homem é, em inúmeros aspectos, imensamente superior ao que seria o exemplo de wise man para Chesterton. Entretanto, é verdade, o homem de Nietzsche jamais será produzido em massa, pois esse homem é justamente o inverso do homem de rebanho.

Mas basta de objeções e debate! Este artigo já exige um ponto final. Assim, entremos com as conclusões.

Rege-me um princípio simplíssimo toda vez que efetuo um julgamento consciente de valor: considero o valor de algo como o saldo quando lhe contrapostas as faces positivas e negativas, exatamente como numa balança. Busco, sempre que possível, valorizar o lado positivo, pois a balança, mesmo que penda ao lado não desejado, normalmente me oferece algo que me exija o reconhecimento.

Assim, não hesito quanto a Chesterton: a exímia escrita, o humor de qualidade e a lucidez diante das grandes questões cristãs me não permitem o julgamento injusto. Falo de alguém franco e imenso.

Chesterton, porém, julga-me intolerável. Mas não sou como Chesterton: a ele guardarei espaço honroso entre os autores de minha predileção.

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