Alfred de Vigny: “La solitude est sainte”

“La solitude est sainte” — assim disse, no século XIX, o poeta romântico francês Alfred de Vigny. Hoje, julgo impossível redigir uma frase como essa; quer dizer: as pedradas seriam a recepção inevitável. Em nossos dias, tudo é coletivo: os homens estão, de mãos dadas, a cirandar em torno do belo mundo que compartilham. E se, por um momento, alguém vê irromper em si um impulso ao retiro, uma necessidade de solidão, pois que não faça alarde! Caso contrário, será esmagado como um inseto, censurado por qualquer que tenha o desprazer de ver-lhe a falta de maturidade social. O solitário é um doente, não ter em si o senso de coletividade é ser inferior. Hoje, só o bem comum interessa, e só ao bem comum deve direcionar-lhe os esforços alguém sensato, moderno e consciente. Sendo assim, não me considero senão um quadrúpede: julgo qualquer tipo de inteligência coletiva impossível e não tenho em mim qualquer senso de pertencimento. O ser humano, para mim, só se desenvolve intelectualmente no silêncio e no retiro. Por isso não posso ser lido, e por isso não encontro sequer um livro de Vigny em português na Amazon ou na Saraiva. Este século é espaçoso demais para ceder albergue à solidão.

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Emil Cioran, mestre emérito em cinismo

Sempre busco inspiração em Emil Cioran, filósofo romeno que radicou-se na França, rompeu com o próprio idioma e tornou-se um dos maiores prosadores da língua francesa. Alguns de seus livros, infelizmente, não possuem tradução portuguesa, como os maravilhosos Aveux et Anathèmes e Solitude et destin — entretanto, há iniciativas honrosas em traduzi-lo, como por exemplo a do professor José Thomaz Brum, através da Editora Rocco. Moralista feroz, dotado de erudição invejável, é comum vermos em Cioran uma sentença cruel intercalada com alguma metáfora absurda, cômica ou risível. Isso, desde a primeira leitura, causou-me impressão fortíssima, no início gerando uma certa incompreensão. Zombaria em meio a assuntos morais? Foi então que percebi o óbvio: é impossível refletir em profundidade não dispondo de senso de humor. Nosso fim é o pó, nossa existência é um sopro; estupidez é levar tudo tão a sério. E como as coisas mais graves não são em essência senão passageiras, tudo é passível de riso e escárnio. Ou seja: a verdadeira inteligência se manifesta através do bom humor. Cioran ensinou-me a rir de tudo: dos outros, do mundo, da morte e de mim mesmo. Com ele aprendi a provocar pela graça, a desdenhar pelo charme, a denegar para provar a mim mesmo que não me apego a nada. Descobri, em Cioran, que o cinismo é nobre enquanto face exaltada do bom humor; é sinal de maturidade, e não o contrário… Assim, às vezes imagino-me estirado numa cama diante da morte. Tenho ainda um último desejo: posso pedir a salvação da humanidade, uma dose de morfina, o que eu quiser. Mas vou morrer, isso é certo. Então alço a vista e dirijo-me ao vulto que acompanha o meu suplício: “Por favor, por favor… conte-me a última piada”.

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Imposições do acaso

Se somos, em alguma medida, reféns do acaso, da sorte, da natureza e das circunstâncias; se uma doença pode surgir subitamente e aniquilar-nos; se um assaltante pode cravar-nos uma bala no peito por capricho; se um acidente de trânsito pode calar nosso último suspiro; se nossa moradia pode vir a desabar; se um incêndio repentino pode reduzir-nos a cinzas; se nossos queridos podem inopinadamente nos abandonar; se podemos ver embarcados um avião a cair; se nossos maiores planos podem mostrar-se estúpidos, ou serem aniquilados por algum infortúnio; se toda a nossa vida pode não render uma única piada e desfazer-se na imensidão da espécie e na vastidão do tempo, não vejo postura inteligente que não parta da humildade.

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O idiota, de Fiódor Dostoiévski

O idiota, de Fiódor Dostoiévski, é certamente um livro que abordarei em outras oportunidades. A obra, assim como Don Quijote de la Mancha, de Cervantes, é genial e pode confundir os incautos. Como disse em outra ocasião, agradeço muito não ter taxado esse livro de cômico, e o fiz somente por tê-lo lido já com algum preparo intelectual. Dostoiévski consegue, mais nesse do que em outros livros, dar amplitude à sua obsessão por personalidades tocadas pelo divino. O príncipe Míchkin, protagonista do livro, é a personificação do que se pode atingir de mais nobre enquanto ser humano. Dotado de bondade e complacência infinitas, o príncipe gera empatia onde quer que passe; entretanto, é incompreendido: seus semelhantes associam-lhe a candura à inocência, à falta de tino, taxando-o de idiota. Dentre todas as temáticas em Dostoiévski, é a deste O idiota a que mais me fascina: a elevação humana passando necessariamente pelo aniquilamento da vaidade. Míchkin sabe-se um incompreendido, ou melhor: sabe os outros julgarem-lhe um idiota; e mesmo assim não altera sua postura complacente para com ninguém. Que importa o que os outros pensam? Míchkin parece imune à concupiscência, e é capaz de fitar a maldade nos olhos, sendo luz pelo contraste com as sombras que evidencia em seu redor. Sua bonomia agride, molesta, e o convívio só lhe expõe a superioridade moral. Idiota? Assim como Aliócha, de Os irmãos Karamázov, parece Míchkin caminhar entre os homens para provar a assimetria entre o humano e o divino, a miséria e a graça, o terreno e o celestial. E prova-nos, indubitavelmente, toda a pequenez dos pequenos desejos, das pequenas vaidades e do orgulho, que aniquila o que talvez seria a única virtude humana digna deste nome.

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