Gritando diante de uma tela

Tento concentrar-me numa leitura difícil e o vizinho, gritando diante de uma tela, esmurrando as paredes, pisando forte de um lado para o outro, não quer deixar. O texto é cristão, mística cristã. E ao invés de lê-lo, absorvê-lo, reflito se devo ou não perdoar o animal que berra sem parar. Irado, ele quebrará alguma coisa, tenho certeza. Pronunciou, em cinco minutos, todos os palavrões que conheço. Parece o lateral-direito do time ter feito qualquer bobagem. Gol do adversário. Socos, berros, novos palavrões. E o meu abafador de ruído somente abafa a porcaria do ruído. Devo perdoá-lo? Tento pensar e um insulto invade-me a mente. O animal arrisca uma parada cardíaca por nada, e o espetáculo perde a graça porque coloca meu quarto a tremer. Perco completamente o fio da narrativa e a paciência. Atiro o livro a qualquer canto e deixo que o juízo me convença: o “próximo” inviabiliza qualquer argumento cristão.

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A consciência evoluída tem de portar-se como uma empresa

É curioso notar o movimento da psicologia das massas. Para além da noção utilitária do próprio valor, agora, a consciência evoluída tem de portar-se como uma empresa, isto é, não somente aceitá-los de bom grado, como ansiar por feedbacks. Escuta, ó alma, peça-os e agradeça, sempre! E as relações — todas elas! — dotadas de um caráter comercial. Quer dizer: o ser humano passa a existir em função da “satisfação dos clientes”. De sorriso esticado na face, mostra-lhe a maturidade quando se esforça por agradar. Sempre os outros, sempre o extra, sempre o grupo como critérios soberanos de validação dos próprios atos. E o “senso comum” forçando a universalidade da submissão… Oh, espécie! cujos resquícios da dignidade parecem subordinados a uma migração voluntária de indivíduos de volta à floresta…

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Uma postura antimarketing

Se a virtude majoritariamente se manifesta na abstenção, na negativa, na anulação de disposições naturais, e se o aspecto geralmente lhe é áspero, frio e intransigente, é forçoso concluir que ela exige uma postura ativa em prol da depreciação da própria imagem, ou seja, uma postura essencialmente antimarketing — a nível pessoal, é verdade, mas acaso essa divisão ainda é possível?

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A multidão é essencialmente covarde

Sempre que me deparo com a agressão em massa contra um indivíduo noto, em primeira instância, a desigualdade do combate. Foi-se o tempo dos duelos; foi-se a noção de que a honra, mesmo aviltada, exige o combate leal. A multidão é essencialmente covarde por valer-se da opressão numérica. Constato que, ainda que o indivíduo tenha feito qualquer coisa de condenável, eu jamais serei capaz de urrar vendo-lhe a cabeça a rolar. Rechaço, sempre e obrigatoriamente, o berro repugnante da multidão. Nunca estarei ao lado da turba impessoalizada, do somatório de covardes que se escondem sob a máscara de uma “causa comum” para agredir.

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