Ser ou não ser o que de fato somos

Vamos da abertura do excelente ensaio Banquete de ossos, de Bruno Tolentino, publicado em 1998 e atualíssimo:

À beira das comemorações do Manifesto Antropófago, dentre os mais supervalorizados subprodutos paulistanos, meditemos no pobre estado de nossa linguagem. Passemos sobre a confusão de nossas idéias, coisa herdada dos subprodutos do neopositivismo oitocentesco, já que, no primeiro caso, o problema é bem mais recente, produzido para nós para uso e abuso doméstico e, portanto, reparável por uma difícil, mas urgente, restauração da língua que nos foi legada pelo colonizador à sua dignidade original, isto é, lusitana com muita honra! Não somos uma variante afro-cafuza da lusofonia, nosso dilema não é “tupi or not tupi”, é, ainda e sempre, ser ou não ser o que de fato somos: uma grande e sempre por si mesma renovada civilização lusófona.

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Um narrador não deve fornecer interpretações da própria obra

Em páginas de Umberto Eco, deparo-me com este problema tão comum e insistente, que tanto afligiu desde Nelson Rodrigues a Andrei Tarkovski, o próprio Umberto Eco e outros tantos, que é a cobrança de explicações sobre a própria obra. Umberto Eco resume, em minha tradução direta:

Um narrador não deve fornecer interpretações da própria obra, caso contrário não teria escrito um romance, que é uma máquina geradora de interpretações.

Creio o “romance” se aplicar a qualquer obra artística. Interpretar não é da alçada do autor, nunca foi e jamais será. Exigir do artista qualquer justificativa é não menos que tentar destruir-lhe a obra.

A situação é engraçada, porquanto é justamente a interpretação que todos, desde o leitor até o crítico, parecem exigir do autor.

Tarkovski, com sua montagem não linear e suas cenas de teor altamente subjetivo e poético, revela-se em Esculpir o tempo alvo de inúmeras cartas indignadas e ofensivas de espectadores simplesmente lhe exigindo explicações.

Nelson Rodrigues, por sua vez, passou a vida a ter de justificar por que os outros censuravam suas obras, quando obviamente nada tinha que ver com as interpretações de suas cenas.

A lista se estende ao infinito: dramaturgos, romancistas, cineastas… muitos e muitos alvos da mesma noção infesta de que o autor deve explicações ao público.

É triste saber dissolvido o sentido da arte, saber que o público desconhece por completo a essência de uma obra artística e julga o artista como a um panfleteiro, alguém que deseja lhe provar a opinião ou lhe angariar alguma concordância.

Entretanto, há o lado positivo e talvez muito, muito positivo. Tomando conhecimento da própria sina, o artista saberá traçar a distância ideal que deve tomar do público, blindando-se, assim, e salvando a sua obra.

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O grande estilo exclui também o que é agradável

Palavras de Nietzsche:

A grandeza de um artista não se mede segundo os “belos sentimentos” que ele desperta: só as mocinhas acreditam nisso. Mas segundo a intensidade que emprega para atingir o grande estilo. (…) Não desejaria desapreciar as virtudes amáveis, mas não se concilia com elas a grandeza de alma. Nas artes, o grande estilo exclui também o que é agradável.

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O vermelho e o negro, de Stendhal

O vermelho e o negro, de Stendhal… Romance certamente entre os melhores de todos os tempos. Enredo magnífico, que encerra a recusa terminante de Julien Sorel, filho de humilde carpinteiro, a seguir uma vida camponesa medíocre e ser o espelho do próprio pai. A trama corre na França em proximidades da Revolução de 1830. Julien, criado por pai inculto, é jovem que desde cedo apresenta proeminência na leitura dos textos sacros: sabe latim e recita trechos da Bíblia de cor. Porém o pai, severo, envergonha-se do filho franzino, pouco apto ao trabalho braçal, invejando-lhe, ademais, os dotes intelectuais que não possui. Certo dia este rude camponês vende o filho a ser preceptor de algumas crianças, não deixando de lembrar-lhe a dívida que deixou em aberto pela comida que recebeu em casa, que um dia terá de pagar. O pai aproveita e deixa manifesto ao filho o desprezo pela função que irá exercer. Julien, entretanto, enxerga na obrigação uma oportunidade: o contato diário com a Bíblia, pregando a uma família de classe social superior, poderá abrir-lhe o caminho para carreira eclesiástica, dotada de inúmeras vantagens. Temos aqui um conflito assaz revelador da personalidade de Julien Sorel: desejoso da carreira militar, admirador íntimo de Napoleão, tem de optar pela religiosa, visto ser a vereda que a condição lhe permite. Abandona o sonho da farda vermelha, passando a perseguir o da batina negra. Julien impressiona, agrada, e em pouco consegue ingressar num seminário. A obra, pois, ganha corpo: o jovem, a despeito de seu conhecimento da doutrina cristã, não ingressa no seminário pela fé, mas pelo desejo de qualquer coisa que o afaste da realidade camponesa, qualquer coisa que lhe traga ascensão social. Reparamos atitudes, palavras de nosso protagonista e vemos, em suma, um bom rapaz, piedoso e austero, inteligente e trabalhador. Mas Julien veste uma máscara: está disposto a tudo para saciar-lhe o desejo. Stendhal, nesse magnífico e emblemático exemplo do que se convencionou chamar de “romance psicológico”, afunda na análise dos pensamentos e motivações do protagonista, que cai em armadilhas o tempo inteiro, posto vê-se refém das próprias paixões, incapaz de dominar-lhe o instinto. Julien encontra-se um hipócrita, dependente da simulação, da falsidade para progredir em seus objetivos. A narrativa corre e o jovem, pouco a pouco, uma vez após a outra, sufoca sua dimensão humana, sua dimensão moral. Os afetos que nutre, sinceros, acabam sempre em segundo plano quando contrapostos a oportunidades de ascendência. Assim Julien avança, adquire respeito, voz entre classes superiores da sociedade, inacessíveis para o filho de um camponês. E rapidamente deixa, de fato, de ser tão somente o filho de um camponês. Stendhal entrega-nos um personagem banhado na resiliência, no talento, na inveja, na hipocrisia, na inteligência, nas paixões, na ambição, no remorso, na saudade, e não conseguimos deixar de sentir junto ao jovem, de maquinar e refletir consoante às suas reflexões. O problema escancara, porém, quando percebemos a essência da personalidade de Julien Sorel — e talvez da nossa: — escravo do desejo, extremamente orgulhoso, Julien parece movido por um agudo ressentimento contra o mundo, parece desejar dar-lhe o troco. E acaba caindo, porquanto o desejo lhe não poderia conduzi-lo a outro fim. Queimando-se, pois, em todas as relações que construíra, tendo-lhe a ambição a descoberto, taxado de vil e mau-caráter, Julien vê-se condenado à pena do sangue. Num arroubo selvagem e maligno, fracassa; encarcerado, imerso em melancolia, sente-lhe o amor ressurgir. Mas é somente o espasmo da matéria que já nasce condenada. Julien Sorel acaba decapitado. Seu nome, contudo, perdurará enquanto houver espécie humana.

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