O grande estilo exclui também o que é agradável

Palavras de Nietzsche:

A grandeza de um artista não se mede segundo os “belos sentimentos” que ele desperta: só as mocinhas acreditam nisso. Mas segundo a intensidade que emprega para atingir o grande estilo. (…) Não desejaria desapreciar as virtudes amáveis, mas não se concilia com elas a grandeza de alma. Nas artes, o grande estilo exclui também o que é agradável.

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O vermelho e o negro, de Stendhal

O vermelho e o negro, de Stendhal… Romance certamente entre os melhores de todos os tempos. Enredo magnífico, que encerra a recusa terminante de Julien Sorel, filho de humilde carpinteiro, a seguir uma vida camponesa medíocre e ser o espelho do próprio pai. A trama corre na França em proximidades da Revolução de 1830. Julien, criado por pai inculto, é jovem que desde cedo apresenta proeminência na leitura dos textos sacros: sabe latim e recita trechos da Bíblia de cor. Porém o pai, severo, envergonha-se do filho franzino, pouco apto ao trabalho braçal, invejando-lhe, ademais, os dotes intelectuais que não possui. Certo dia este rude camponês vende o filho a ser preceptor de algumas crianças, não deixando de lembrar-lhe a dívida que deixou em aberto pela comida que recebeu em casa, que um dia terá de pagar. O pai aproveita e deixa manifesto ao filho o desprezo pela função que irá exercer. Julien, entretanto, enxerga na obrigação uma oportunidade: o contato diário com a Bíblia, pregando a uma família de classe social superior, poderá abrir-lhe o caminho para carreira eclesiástica, dotada de inúmeras vantagens. Temos aqui um conflito assaz revelador da personalidade de Julien Sorel: desejoso da carreira militar, admirador íntimo de Napoleão, tem de optar pela religiosa, visto ser a vereda que a condição lhe permite. Abandona o sonho da farda vermelha, passando a perseguir o da batina negra. Julien impressiona, agrada, e em pouco consegue ingressar num seminário. A obra, pois, ganha corpo: o jovem, a despeito de seu conhecimento da doutrina cristã, não ingressa no seminário pela fé, mas pelo desejo de qualquer coisa que o afaste da realidade camponesa, qualquer coisa que lhe traga ascensão social. Reparamos atitudes, palavras de nosso protagonista e vemos, em suma, um bom rapaz, piedoso e austero, inteligente e trabalhador. Mas Julien veste uma máscara: está disposto a tudo para saciar-lhe o desejo. Stendhal, nesse magnífico e emblemático exemplo do que se convencionou chamar de “romance psicológico”, afunda na análise dos pensamentos e motivações do protagonista, que cai em armadilhas o tempo inteiro, posto vê-se refém das próprias paixões, incapaz de dominar-lhe o instinto. Julien encontra-se um hipócrita, dependente da simulação, da falsidade para progredir em seus objetivos. A narrativa corre e o jovem, pouco a pouco, uma vez após a outra, sufoca sua dimensão humana, sua dimensão moral. Os afetos que nutre, sinceros, acabam sempre em segundo plano quando contrapostos a oportunidades de ascendência. Assim Julien avança, adquire respeito, voz entre classes superiores da sociedade, inacessíveis para o filho de um camponês. E rapidamente deixa, de fato, de ser tão somente o filho de um camponês. Stendhal entrega-nos um personagem banhado na resiliência, no talento, na inveja, na hipocrisia, na inteligência, nas paixões, na ambição, no remorso, na saudade, e não conseguimos deixar de sentir junto ao jovem, de maquinar e refletir consoante às suas reflexões. O problema escancara, porém, quando percebemos a essência da personalidade de Julien Sorel — e talvez da nossa: — escravo do desejo, extremamente orgulhoso, Julien parece movido por um agudo ressentimento contra o mundo, parece desejar dar-lhe o troco. E acaba caindo, porquanto o desejo lhe não poderia conduzi-lo a outro fim. Queimando-se, pois, em todas as relações que construíra, tendo-lhe a ambição a descoberto, taxado de vil e mau-caráter, Julien vê-se condenado à pena do sangue. Num arroubo selvagem e maligno, fracassa; encarcerado, imerso em melancolia, sente-lhe o amor ressurgir. Mas é somente o espasmo da matéria que já nasce condenada. Julien Sorel acaba decapitado. Seu nome, contudo, perdurará enquanto houver espécie humana.

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Fausto, de Goethe

Tive o prazer de ler Fausto, de Goethe, em tradução de um dos mestres de nossa língua: António Feliciano de Castilho. Em primeiro lugar, sobre a tradução: historicamente, meu critério quase único para escolher traduções tem sido buscá-las diretas do original, a julgar que, assim, a nova obra granjeia maior fidelidade à obra-mãe. Hoje vejo que, sem dúvida, sempre negligenciei o fator determinante de uma tradução: a qualidade do tradutor enquanto artista. Costume mesquinho esse de buscar pelos livros mais baratos… Traduções são obras distintas, quase que separadas das originais, por isso o tradutor, caso se arrisque ao trabalho dificílimo de pôr em seu idioma os versos de grandes poetas estrangeiros, tem de ser, também, grande poeta. E Castilho, repetindo, é um dos mestres de nosso idioma. A mim foi surpresa saber que sua versão portuguesa de Fausto, Castilho a não derivou da original alemã, e sim mediando três versões portuguesas e quatro francesas. O resultado foi um poema belíssimo. De fato, se vemos os recursos expressivos, a eufonia dos idiomas como que irreplicáveis, — e são, — o derivar ou não do original perde preponderância frente à qualidade do poeta tradutor. Agora sobre Fausto: a obra, composta ao longo de sessenta anos por Goethe, data de há quase dois séculos. Como não empatizar, ou por outra: como não assumir o problema do dr. Fausto como o nosso? De início, a obsessiva busca pelo saber: em certa medida, é impossível que a não julguemos como infrutífera e vã. Em seguida, a consequência talvez natural: a perda do prazer, da satisfação, do encanto pela vida terrena. Depois: a ausência de medo, a insubmissão, a revolta do espírito e, evidente, o desamparo. Que esperar desta vida? Há sentido para a ação? A vida terrena é, de alguma forma, virtuosa? Há, enfim, redenção para essa espécie doente que se convencionou chamar de homem moderno? Goethe, em Fausto, faz música enquanto arrisca respostas admiráveis.

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O medo do ridículo

Na era do marketing pessoal compulsivo, da vida paralela sempre linda em redes sociais,  do teatro raso da autoestima e da motivação, da procupação estupidamente obsessiva com a própria imagem, julgamos valiosa mais uma aula do mestre Nelson Rodrigues, em palavras que parecem saídas de um século distante:

(…) Sei que, falando assim, lembro, talvez, o pastor de Chuva, antes do pecado. Não faz mal. Vivo a dizer que considero o ridículo uma de minhas dimensões mais válidas. O medo do ridículo gera as piores doenças psicológicas.

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