Matizes de tormentos

Vamos deste belo soneto de Camões:

Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder n’algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu’, inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
D’erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar n’alma a mágoa do pecado.

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O artista e a coerência

Direi aqui o que para mim é uma obviedade: um artista não tem de prestar contas à coerência. Caso ache necessário, dispõe de liberdade para atirá-la ao espaço. E por que digo isso? Porque me causa fastio ver críticos a dizer de tal ou qual autor “incoerente”. Para mim é muito claro: quando um filósofo ou ensaísta senta-se e pôe-se a escrever o objetivo é um só: a lógica; o autor irá organizar seus pensamentos para expor seu raciocínio da forma mais límpida e precisa que conseguir. O artista, não. Quando um artista senta-se à mesa o objetivo é outro: é expressar-lhe o sentimento com a maior potência possível, ou causar a mais forte impressão no leitor. Coisas diferentes. Por isso é impossível a comparação entre um Aristóteles e um Fernando Pessoa. Um faz uma coisa, outro faz outra. E o artista que sacrifica a expressão pela coerência simplesmente diminui a sua arte: defender ideias não diz respeito a seu trabalho. Nos versos de um gigante:

Do I contradict myself?
Very well then I contradict myself;
(I am large, I contain multitudes.)

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Manuel Said Ali

Li, em sequência, Dificuldades da língua portuguesa e Versificação portuguesa, de Manuel Said Ali, filólogo e sintaticista brasileiro. Qual não foi minha surpresa! Busquei Said Ali em indicação de Manuel Bandeira, e vi em ambas as obras uma visão ímpar sobre nossa língua. Na primeira, Said Ali ilumina questões escabrosas do idioma, como o infinitivo pessoal, o espantoso pronome “se” e os particípios duplos, exibindo ostensivo domínio e noção viva da formação e evolução do português. Na segunda, bom, peguemos emprestadas as palavras de Manuel Bandeira que prefaciam o livro:

O compêndio Versificação portuguesa, ora editado pelo Instituto do Livro, parece-me, não obstante sua brevidade e concisão, o mais inteligente e incisivo que sobre a matéria já se escreveu no Brasil, senão também em Portugal. O eminente Prof. Said Ali, de quem tive a honra de ser aluno de alemão no colégio Pedro II, (…) a quem devemos tantas contribuições magistrais ao estudo de nosso idioma, não é um poeta. Mas o seu íntimo conhecimento da poesia latina e da poesia das grandes literaturas ocidentais dá-lhe competência para versar o assunto com uma autoridade que não terá talvez nenhum poeta da língua portuguesa.

Findas as leituras, não poderia estar mais agradecido. Manuel Said Ali, após extensos estudos, logrou resumir com clareza e precisão inúmeras questões dúbias de nosso idioma e iluminar outras tantas com análises excepcionais. Registro aqui, pois, minha indicação e meu respeito pela obra do professor.

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Alfred de Vigny: “La solitude est sainte”

“La solitude est sainte” — assim disse, no século XIX, o poeta romântico francês Alfred de Vigny. Hoje, julgo impossível redigir uma frase como essa; quer dizer: as pedradas seriam a recepção inevitável. Em nossos dias, tudo é coletivo: os homens estão, de mãos dadas, a cirandar em torno do belo mundo que compartilham. E se, por um momento, alguém vê irromper em si um impulso ao retiro, uma necessidade de solidão, pois que não faça alarde! Caso contrário, será esmagado como um inseto, censurado por qualquer que tenha o desprazer de ver-lhe a falta de maturidade social. O solitário é um doente, não ter em si o senso de coletividade é ser inferior. Hoje, só o bem comum interessa, e só ao bem comum deve direcionar-lhe os esforços alguém sensato, moderno e consciente. Sendo assim, não me considero senão um quadrúpede: julgo qualquer tipo de inteligência coletiva impossível e não tenho em mim qualquer senso de pertencimento. O ser humano, para mim, só se desenvolve intelectualmente no silêncio e no retiro. Por isso não posso ser lido, e por isso não encontro sequer um livro de Vigny em português na Amazon ou na Saraiva. Este século é espaçoso demais para ceder albergue à solidão.

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