O lobo da estepe, de Hermann Hesse

Fechei essa obra genial desgostoso do desfecho da trama. Pensei: “Como será que esse livro repercutirá em mim no futuro?”. Refleti sobre a leitura: desde o início, fiquei encantado com a agudeza e precisão das descrições psicológicas do misantropo, autodestrutivo e depressivo Harry Haller, que a mim parecia-me um irmão. A narrativa desenvolve-se instigante, vendo Harry brotar, através de uma mulher — Hermínia, — seu lado humano, em seguida enfrentando uma acirrada batalha psicológica em vista de sua personalidade ambivalente. A tensão psicológica é constante, e as reflexões de Harry são dignas de nota. Vem o cume do livro, onde Harry parece em delírio. Senti-me, pouco antes, diante da presença física de Goethe e Mozart, evocados pelo autor. Não me emociono nem um pouco com o que se poderia chamar de clímax do enredo — ou, se quiserem, com o que imediatamente sucede o clímax. — Algumas páginas adiante, fecho o livro: “E então? De que me lembrarei no futuro?”. Passaram-se dois meses:  já mal me lembro do desfecho; o restante do livro, contudo, resta vivo em mim.

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Sobre a autoajuda

Há algumas coisas que considero impossíveis, por exemplo, Donald Trump fantasiado de Buda em uma festa carnavalesca. Outra: um autor de autoajuda com um livro de Dostoiévski nas mãos. E não só de Dostoiévski, mas de Shakespeare também: escrever autoajuda para alguém que leu Shakespeare é uma absoluta impossibilidade. Eu poderia continuar estendendo a lista de autores, mas resumo: os clássicos; nenhum autor de autoajuda leu os clássicos. E por que isso é tão óbvio? Porque há uma incompatibilidade total entre o que se encontra nos clássicos e o que se encontra em livros de autoajuda. Fico a refletir: há uma herança intelectual transmitida através dos séculos que deve ser respeitada e absorvida por alguém que tenciona dar lições aos outros. Se ainda falamos de Shakespeare, é porque há em Shakespeare algo valioso, perene, comum à toda a humanidade. E diria até que, para alguém que quer conhecer minimamente o ser humano, ou ser minimamente culto, os clássicos são imprescindíveis. Repito, pois, em minha obsessão: dez obras, não mais; eu duvido que qualquer autor de autoajuda tenha lido dez obras quaisquer entre Shakespeare e Dostoiévski. Pode ser que não tenha entendido nada? Não creio. Pode ser que o autor viu na autoajuda o dinheiro fácil? Talvez… Mas aqui, estou à vontade para cometer a desfaçatez da generalização: um livro de autoajuda não é intelectualmente relevante — desculpem-me, mas não é.

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A unidade da alma

Vamos do luminoso Dante Alighieri, na tradução de Italo Eugênio Mauro:

Quando, seja por júbilo ou pesar
Que faculdade nossa experimente,
Nela nossa alma inteira se empenhar,

Vemos que nenhuma outra ela consente:
E isso refuta o engano de quem crê
Que uma alma sobre a outra em nós se avente.

Portanto, quando se ouve algo, ou se vê,
Que tenha forte a si a alma voltada,
O tempo passa sem lhe darmos fé,

Porque uma é a faculdade a ele aplicada
E outra é a que nos toma a alma inteira;
Aquela é solta e esta lhe é ligada.

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As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Primeiro, o especialista; depois, o amador. Vamos ver alguns dos comentários de Otto Maria Carpeaux sobre As viagens de Guliver, de Jonathan Swift:

Jonathan Swift — clérigo humanista, fiel-infiel à Igreja da qual era sacerdote — é um dos maiores satíricos da literatura universal, talvez o maior de todos. Gulliver’s Travels é o livro mais cruel que existe. As atividades febris e inúteis dos anões de Lilliput ridicularizam a vida parlamentar na Inglaterra do século XVIII e em todos os países e épocas de política constitucional e profissional. Esboçando esse panorama político, Swift lembrou-se dos seus tempos de panfletário a serviço do partido conservador, dos tories; é uma sátira mordaz contra os whigs. Mas logo depois, Swift descreve o regime patriarcal no reino dos gigantes de Brobdingnag; e este não é nada melhor. Ao contrário, o tamanho dos gigantes torna grotescamente enormes todos os pormenores, isto é, as infâmias das “classes conservadoras”. Tampouco são melhores os intelectuais que, no país de Laputa, vegetam como imbecis completos. Na última parte, o elogio dos Houyhnhms, isto é, dos cavalos, mais nobres e mais inteligentes que os homens, é a condenação absoluta do gênero humano in totum. Enfim, o episódio dos Struldbrugs, que devem ao progresso científico a imortalidade da vida, não escapando, porém às doenças, fraquezas e senilidade da extrema velhice, e que não conseguem morrer, já condena a própria vida. As inúmeras digressões espirituosas e mordazes — a descrição dos horrores da guerra como se fossem as coisas mais naturais do mundo, o escárnio dos dogmas e ritos cristãos, incrível na boca de um alto dignatário da Igreja — revelam em Swift o representante mais radical do racionalismo na Ilustração; nem sequer Voltaire ousou tanto.

Aí estão as lúcidas palavras de Carpeaux — e há muito mais delas sobre Swift em História da Literatura Ocidental (vol. 2). — De minha parte, digo o seguinte: As viagens de Gulliver foi, talvez, o livro que mais me marcou. Sempre volto a ele, releio passagens, e tenho-o pulsando em mim. Quando escrevo e, por um momento, creio exagerar em meus julgamentos, penso em Swift. Lembro-me que Nelson Rodrigues disse uma vez que a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. Segundo esse raciocínio, poucos livros purificam tanto como As viagens de Gulliver; julgamento de que compartilho. A “grande alma, nobre e ferida” de Swift — ainda usando palavras de Carpeaux — é capaz de impregnar-nos de um profundo desconforto e repulsa para com nossa natureza; porém, sem dúvida, acaba tornando-nos pessoas melhores.

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