Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski

Na primeira vez em que li Crime e castigo, levei dois dias para dar cabo às 590 páginas da minha edição. Foi inédito para mim ler um livro com tamanha voracidade. Lembro-me que, num sábado chuvoso, iniciei a leitura por volta das 16h; quando o sol raiou, às 6h do domingo, ainda estava eu com o livro nas mãos. Censurado pelo sol, optei por dormir algumas horas. Ao acordar, enveredei na sessão de leitura que daria remate ao livro. Mas por que meu encanto? Que é que tem esse livro de tão especial? Para começo de conversa, foi Crime e castigo meu primeiro contato com Dostoiévski: nunca havia lido nenhum autor que se aproximasse de sua acuidade psicológica. Lendo Crime e castigo senti-me, fisicamente, na Rússia; senti-me, aterrorizado, um assassino e senti-me, em maldição, assolado pela culpa. Pela primeira vez articulei e validei em mente pensamentos niilistas, que brilharam numa lógica incontestável e evidenciaram a mim a relatividade da moral. Páginas depois, tudo isso cai por terra, e Raskólnikov logra conduzir-me junto de si ao abismo. Febril, delirante, faz-me sentir na pele a tensão da culpa, o medo da perseguição. E, em meio a trevas, desesperado e arrependido, ensina-me o que é redenção; junto de Sônia, ensina-me o que é a carne e o que é a alma; e condenado, ensina-me o verdadeiro valor das coisas terrenas. Fechei o livro resoluto: aconteça o que acontecer, serei escritor.

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Mulheres…

Banhemo-nos de Camilo Castelo Branco, desta vez refletindo a respeito das mulheres:

Não era muito que Tadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: “Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras”. Isto é o mais seguro; mas não é infalível.

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O lobo da estepe, de Hermann Hesse

Fechei essa obra genial desgostoso do desfecho da trama. Pensei: “Como será que esse livro repercutirá em mim no futuro?”. Refleti sobre a leitura: desde o início, fiquei encantado com a agudeza e precisão das descrições psicológicas do misantropo, autodestrutivo e depressivo Harry Haller, que a mim parecia-me um irmão. A narrativa desenvolve-se instigante, vendo Harry brotar, através de uma mulher — Hermínia, — seu lado humano, em seguida enfrentando uma acirrada batalha psicológica em vista de sua personalidade ambivalente. A tensão psicológica é constante, e as reflexões de Harry são dignas de nota. Vem o cume do livro, onde Harry parece em delírio. Senti-me, pouco antes, diante da presença física de Goethe e Mozart, evocados pelo autor. Não me emociono nem um pouco com o que se poderia chamar de clímax do enredo — ou, se quiserem, com o que imediatamente sucede o clímax. — Algumas páginas adiante, fecho o livro: “E então? De que me lembrarei no futuro?”. Passaram-se dois meses:  já mal me lembro do desfecho; o restante do livro, contudo, resta vivo em mim.

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Sobre a autoajuda

Há algumas coisas que considero impossíveis, por exemplo, Donald Trump fantasiado de Buda em uma festa carnavalesca. Outra: um autor de autoajuda com um livro de Dostoiévski nas mãos. E não só de Dostoiévski, mas de Shakespeare também: escrever autoajuda para alguém que leu Shakespeare é uma absoluta impossibilidade. Eu poderia continuar estendendo a lista de autores, mas resumo: os clássicos; nenhum autor de autoajuda leu os clássicos. E por que isso é tão óbvio? Porque há uma incompatibilidade total entre o que se encontra nos clássicos e o que se encontra em livros de autoajuda. Fico a refletir: há uma herança intelectual transmitida através dos séculos que deve ser respeitada e absorvida por alguém que tenciona dar lições aos outros. Se ainda falamos de Shakespeare, é porque há em Shakespeare algo valioso, perene, comum à toda a humanidade. E diria até que, para alguém que quer conhecer minimamente o ser humano, ou ser minimamente culto, os clássicos são imprescindíveis. Repito, pois, em minha obsessão: dez obras, não mais; eu duvido que qualquer autor de autoajuda tenha lido dez obras quaisquer entre Shakespeare e Dostoiévski. Pode ser que não tenha entendido nada? Não creio. Pode ser que o autor viu na autoajuda o dinheiro fácil? Talvez… Mas aqui, estou à vontade para cometer a desfaçatez da generalização: um livro de autoajuda não é intelectualmente relevante — desculpem-me, mas não é.

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