É ela! É ela! É ela! É ela!, de Álvares de Azevedo

Fico a pensar que daria de nosso Álvares de Azevedo que, infortunadamente, deixou o mundo aos vinte anos de idade.

É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi… minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas…
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!…
Tinha na mão o ferro do engomado…
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido…
Fui beijá-la… roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido…

Oh! Decerto… (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela… que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores…

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio…

É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja…
Abri cioso a página secreta…
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela… eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela…
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

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Voto de silêncio

Há um personagem em meus contos que, fazendo voto de silêncio, diz o seguinte: “a paz de espírito é a surdez”. Esse personagem sou eu, em minhas insuportáveis reflexões. Não há nada capaz de irritar-me mais do que a palavra, o rumor de voz humana. Digo isso e certamente vocês pensam que faço piada. Mas, sempre que imagino um mundo perfeito, não há ruído: o silêncio é absoluto, imperturbável. E fico a pensar em quanto tempo passarei a me irritar também com a palavra escrita. Sejamos razoáveis: não tenho trinta anos, mas já tenho quase setenta. E se, em razão do avanço da idade, por uma compreensível e até natural diminuição de minha tolerância com as coisas, os signos gráficos passarem a incomodar-me? Bom, então eu realmente não sei o que mais a vida poderá guardar a mim.

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Mal secreto, de Raimundo Correia

Iniciemos o ano com o soneto Mal secreto, de Raimundo Correia:

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

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N’um album, de Alexandre Herculano

Hoje, meu poema preferido do formidável Alexandre Herculano:

Quando o Senhor envia
O trovador ao mundo,
Faz devorar a essa alma
Fel amargoso e immundo;

Porque lhe diz: — “Poeta,
Vai conhecer a terra;
Prova dos seus deleites;
Prova do mal que encerra.

Desses e deste esgota
As taças muitas vezes,
Embora de uma e d’outra
Aches no fundo fézes:

E quando bem souberes
Que tudo é sonho vão;
Que é nada a dor e o goso,
Sólta o teu hymno então.”

E o pobre desterrado
Vem seu mister cumprir.
Nasce: homens e universo,
Tudo lhe vê sorrir;

E o seu balbuciar
Um canto é d’innocencia:
Mas outro foi seu fado;
Guia-o a providencia.

É cherubim precíto
Qu’ inda entrevê o céu,
Mas através da vida,
Mas através de um véu.

Em turbilhão d’affectos,
Seu íntimo viver
Rapido lhe devora
Sperança, amor e crer.

Do goso nos deli­rios
Debalde busca o amor;
Saudade melancholica
Pede debalde á dor.

Depois, desanimado,
Pára a pensar em si,
Acha no seio um ermo,
E tristemente ri.

É desde aquelle instante
De um acordar atroz,
Que ao condemnado lembra
Do que o mandou a voz.

Então entende e cumpre
Seu barbaro destino;
Então é que elle aprende
A modular um hymno.

Virgem, ao que assim passa
Por meio do existir,
Calcando os frios restos
Do crer e do sentir,

Não peças te revele
Sua alma na poesia,
E dê aos pensamentos
O encanto da harmonia;

Porque lá, nesse abysmo,
Não resta uma illusão:
Só ha perpetua noite,
E injuria e maldicção.

Não entenderas, virgem
Ainda innocente e pura,
O canto que surgira
Dessa alma gasta e escura.

Deixa-o seguir seu norte,
Cumprir missão cruel;
Deixa-o verter o escarneo;
Deixa-o verter o fel;

Deixa-o cuspir em faces
Onde não ha pudor,
E ao mundo, ebrio de si,
Rindo ensinar a dor.

As sanctas harmonias
De cantico innocente
Sabe-as o alvor do dia
Quando rompe do oriente;

Murmura-as o regato;
Vibra-as o rouxinol;
Vem no zumbir do insecto,
No prado, ao pôr do sol;

Vivem no puro affecto
Da filial piedade,
Nos sonhos e esperanças
Da juvenil idade.

Esta poesia é tua:
Eu já a ouvi e amei;
Mas hoje nem a entendo,
Nem repeti-la sei.

Assim, meu nome só
Escreverei aqui;
Som vão, intelligivel
Apenas para ti;

Extincto candelabro
Do templo do Senhor,
Que por algumas horas
Deu luz, teve calor;

Lenda de sepultura,
Que fala em gloria e vida,
E esconde ossada infecta
Dos vermes corroída;

Pinheiro solitario,
Que o raio fulminou,
E que gemeu tombando,
E não mais murmurou.

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