A unidade da alma

Vamos do luminoso Dante Alighieri, na tradução de Italo Eugênio Mauro:

Quando, seja por júbilo ou pesar
Que faculdade nossa experimente,
Nela nossa alma inteira se empenhar,

Vemos que nenhuma outra ela consente:
E isso refuta o engano de quem crê
Que uma alma sobre a outra em nós se avente.

Portanto, quando se ouve algo, ou se vê,
Que tenha forte a si a alma voltada,
O tempo passa sem lhe darmos fé,

Porque uma é a faculdade a ele aplicada
E outra é a que nos toma a alma inteira;
Aquela é solta e esta lhe é ligada.

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As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Primeiro, o especialista; depois, o amador. Vamos ver alguns dos comentários de Otto Maria Carpeaux sobre As viagens de Guliver, de Jonathan Swift:

Jonathan Swift — clérigo humanista, fiel-infiel à Igreja da qual era sacerdote — é um dos maiores satíricos da literatura universal, talvez o maior de todos. Gulliver’s Travels é o livro mais cruel que existe. As atividades febris e inúteis dos anões de Lilliput ridicularizam a vida parlamentar na Inglaterra do século XVIII e em todos os países e épocas de política constitucional e profissional. Esboçando esse panorama político, Swift lembrou-se dos seus tempos de panfletário a serviço do partido conservador, dos tories; é uma sátira mordaz contra os whigs. Mas logo depois, Swift descreve o regime patriarcal no reino dos gigantes de Brobdingnag; e este não é nada melhor. Ao contrário, o tamanho dos gigantes torna grotescamente enormes todos os pormenores, isto é, as infâmias das “classes conservadoras”. Tampouco são melhores os intelectuais que, no país de Laputa, vegetam como imbecis completos. Na última parte, o elogio dos Houyhnhms, isto é, dos cavalos, mais nobres e mais inteligentes que os homens, é a condenação absoluta do gênero humano in totum. Enfim, o episódio dos Struldbrugs, que devem ao progresso científico a imortalidade da vida, não escapando, porém às doenças, fraquezas e senilidade da extrema velhice, e que não conseguem morrer, já condena a própria vida. As inúmeras digressões espirituosas e mordazes — a descrição dos horrores da guerra como se fossem as coisas mais naturais do mundo, o escárnio dos dogmas e ritos cristãos, incrível na boca de um alto dignatário da Igreja — revelam em Swift o representante mais radical do racionalismo na Ilustração; nem sequer Voltaire ousou tanto.

Aí estão as lúcidas palavras de Carpeaux — e há muito mais delas sobre Swift em História da Literatura Ocidental (vol. 2). — De minha parte, digo o seguinte: As viagens de Gulliver foi, talvez, o livro que mais me marcou. Sempre volto a ele, releio passagens, e tenho-o pulsando em mim. Quando escrevo e, por um momento, creio exagerar em meus julgamentos, penso em Swift. Lembro-me que Nelson Rodrigues disse uma vez que a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. Segundo esse raciocínio, poucos livros purificam tanto como As viagens de Gulliver; julgamento de que compartilho. A “grande alma, nobre e ferida” de Swift — ainda usando palavras de Carpeaux — é capaz de impregnar-nos de um profundo desconforto e repulsa para com nossa natureza; porém, sem dúvida, acaba tornando-nos pessoas melhores.

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É ela! É ela! É ela! É ela!, de Álvares de Azevedo

Fico a pensar que daria de nosso Álvares de Azevedo que, infortunadamente, deixou o mundo aos vinte anos de idade.

É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi… minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas…
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!…
Tinha na mão o ferro do engomado…
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido…
Fui beijá-la… roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido…

Oh! Decerto… (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela… que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores…

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio…

É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja…
Abri cioso a página secreta…
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela… eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela…
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

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Voto de silêncio

Há um personagem em meus contos que, fazendo voto de silêncio, diz o seguinte: “a paz de espírito é a surdez”. Esse personagem sou eu, em minhas insuportáveis reflexões. Não há nada capaz de irritar-me mais do que a palavra, o rumor de voz humana. Digo isso e certamente vocês pensam que faço piada. Mas, sempre que imagino um mundo perfeito, não há ruído: o silêncio é absoluto, imperturbável. E fico a pensar em quanto tempo passarei a me irritar também com a palavra escrita. Sejamos razoáveis: não tenho trinta anos, mas já tenho quase setenta. E se, em razão do avanço da idade, por uma compreensível e até natural diminuição de minha tolerância com as coisas, os signos gráficos passarem a incomodar-me? Bom, então eu realmente não sei o que mais a vida poderá guardar a mim.

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