Álcool e arte

Embora já tenha brincado, num poema dedicado a Augusto dos Anjos, que eu supostamente fazia versos ao lado de uma taça de vinho, tal possibilidade é-me absolutamente impensável, e não consigo sequer cogitar um possível estímulo proveniente do álcool que facilite o trabalho criativo, especialmente em se tratando de poesia. Para fazer versos, é preciso reunir não somente toda a lucidez disponível, mas muita energia, boa disposição e silêncio, para que seja possível concentrar inteiramente o espírito na criação. Mesmo na prosa, que por vezes parece um trabalho de força, o álcool não seria senão um empecilho após as primeiras linhas, quando é preciso sustentar a concentração e avançar como empurrando as pesadíssimas palavras para frente. Do álcool, somente se extrai uma certa euforia e uma ilusão de que a ideia sairá magnífica no papel — assim como ocorre por vezes sem ele, e então temos de confrontar a realidade… Parece-me justa a comparação com um atleta de alto nível, que embora possa gostar de beber, jamais o fará nos instantes que precedem um treino sério ou uma competição.

Obrigado, Deus!

Considero uma manifestação real de Deus em minha vida o ter-me livrado de centenas de páginas de interpretação da vida de Pessoa “through a Freudian lens”, martírio ao qual eu fatalmente me submeteria para conhecer um pouco mais da vida do poeta. Então tomo conhecimento da existência deste tijolo de mil páginas, de autoria de Richard Zenith e publicado recentemente, que já nas primeiras linhas aponta as conclusões do biógrafo freudiano João Gaspar Simões. Segundo este, “nostalgia for lost childhood and the pure happiness it represented is the key to understanding the man and his work”. Que vergonha destes discípulos de Freud! Que vergonha! E o incrível é não ruborizarem ao despejar tais conclusões assustadoramente rasas e previsíveis. Há, para o discípulo de Freud, duas únicas causas para toda manifestação humana: a infância e o desejo. Nada além disso é possível, e tudo pode por elas ser infalivelmente justificado. Assim que um homem que manifeste na vida a vocação religiosa, obviamente, seja o monge ou o santo que for, fá-lo pela frustração de não ser capaz de se relacionar com mulheres, ou pela sexualidade mal resolvida. Já um artista tem de celebrar-se pela devassidão, faz arte pela necessidade de expressar traumas infantis não superados. Em todo senhor de cabeça branca há, naturalmente, um pervertido interior que lhe constitui a essência… Que vergonha! que vergonha! É espantoso notar a pobreza da psicanálise! E obrigado, Deus, muito obrigado por livrar-me dos insultos que teria de confrontar em razão do apreço que tenho pelo enorme português…

A trajetória intelectual de Hermann Hesse

A trajetória intelectual de Hermann Hesse é admirável. Os “escritos póstumos de Joseph Knecht”, mormente “As três vidas”, são como uma síntese de uma vida inteira dedicada ao estudo, de uma longa imersão nas mais altas filosofias do oriente e do ocidente; uma síntese das grandes religiões e das grandes compreensões da realidade, partindo dos elementos mais simples aos mais complexos, da moral prática às abstrações do pensamento. E ver tais linhas provenientes do autor de Demian… Não foram poucos os que tentaram harmonizar o oriente e o ocidente no último século; mas pouquíssimos o fizeram com a beleza alcançada por Hesse.

O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse

Este belíssimo romance é uma admirável tentativa de sintetizar quanto há de mais alto e mais nobre na existência humana. Se analisamo-lo com cautela, vemos que a virtuosidade, em suas múltiplas faces, foi cuidadosamente distribuída pelas personagens e pelo enredo do romance. Dificílima tarefa! e por isso digna do maior apreço. Estruturalmente, a obra é interessante por fornecer-nos lances assaz previsíveis e deixar algumas lacunas na história. Tal nos faz refletir sobre a necessidade da surpresa quando há um todo harmonioso a expressar uma mensagem profunda e potente. Numa narrativa inteiramente impregnada desta harmonia, quanto se ganha surpreendendo? Notamos, na obra, o honroso esforço por dar voz ao inefável, por expressar-se pela singeleza e complexidade do silêncio, da música, do céu estrelado, como se tais elementos não carecessem além da própria presença para dizer-nos o que têm a dizer. A vida de Joseph Knecht encerra-se numa cena de simbolismo inesquecível: cada detalhe contribui para a mensagem central da obra. A beleza radiante da paisagem, os contrastes entre juventude e velhice, instinto e racionalidade, saúde e doença, o ato simultaneamente humilde e corajoso do erudito que desafia e permite-se engolido pela natureza, tudo isso, tomado em conjunto, parece tangenciar a complexidade da vida. Por algum motivo, brota-nos a imagem de Hermann Hesse voando alto, muito alto, nos mesmos anos em que um exército de autores atiravam a literatura na depravação…