Um animal inadaptado

Uma vez a cada dois anos, sou forçado pelo Estado brasileiro a sair de minha casa e dirigir-me a uma seção eleitoral. O Estado, autoritário, obriga-me sob a ameaça de complicar-me a vida, caso não cumpra com a obrigação que contraí sem nunca ter assinado um termo de consentimento. Por isso, religiosamente, uma vez a cada dois anos estou, a pé, dirigindo-me a um lugar que não quero, para enfrentar uma longa fila que me desgosta e digitar números que não me agradam em uma urna eletrônica. Assim procedo desde a maioridade. Pois bem. Dado o pretexto, a piada: notei, neste 2020, jamais ter votado em um candidato que venceu para nenhum cargo, seja municipal, estadual ou federal: sempre escolho o que perde. Penso e automaticamente o sorriso brota-me na face. Alegro-me toda vez que noto uma evidência de que não sou como as outras pessoas. Tenho, pois, nova confirmação do que já sei: sou um animal inadaptado, não tenho nenhuma semelhança de ideias, temperamento ou qualquer outra coisa com as pessoas que me rodeiam. E se o futuro do Brasil depender de que eu acorde num domingo, enfrente uma fila e eu tenha direito de escolha (o que, naturalmente, não tenho, a despeito das aparências), o país está lascado…

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É incrível como a necessidade de dinheiro piora a existência

É incrível como a necessidade de dinheiro piora a existência. Forçada, a maioria tem-na como natural, mas a verdade é que é escrava sem sabê-lo. Naturalmente, alguns não partilham da mesma sorte. E que peso não carregam nas costas! Saber-se necessitado do dinheiro induz a uma tortura psicológica interminável. “Por quanto tempo? Quando me libertarei?” E pior quando a carência abocanha-lhe o grosso da rotina, que é o caso mais comum. Muitos não percebem, anestesiados. Mas viver a cumprir um contrato, a ter obrigações para honrar, a fazer religiosamente o que jamais faria se não precisasse… isso, por acaso, é vida?

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Rindo-me do que enfurece…

Reparo-me com enorme contentamento os desacatos à polícia da linguagem que, como a polícia dos costumes, pretende-se senhora da razão. Acho engraçado e orgulho-me da rebeldia. Sinto-me chegado, pois, dos crucificados que sempre me despertaram a admiração…

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A vida assim nos afeiçoa, de Manuel Bandeira

Um dos belos poemas de Manuel Bandeira:

Se fosse dor tudo na vida,
Seria a morte o grande bem.
Libertadora apetecida,
A alma dir-lhe-ia, ansiosa: — “Vem!

Quer para a bem-aventurança
Leves de um mundo espiritual
A minha essência, onde a esperança
Pôs o seu hálito vital;

Quer no mistério que te esconde,
Tu sejas, tão-somente, o fim:
— Olvido, imperturbável, onde
Não restará nada de mim!”

Mas horas há que marcam fundo…
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo,
Cuja saudade extingue a voz.

Ao nosso ouvido, embaladora,
A ama de todos os mortais,
A esperança prometedora,
Segreda coisas irreais.

E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper:
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel.

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