Sobre a peste

Como habitual, a contingência expondo a fragilidade do homem, desnudando-o por completo. Seus reflexos naturais: o medo e o desespero. Assim, nenhuma novidade: cadáveres sempre assustaram. Entretanto, talvez a nova peste tenha exposto um fresco fenômeno de massa: a dependência do trabalho. Digo isso por ver os que, enclausurados à força, gritam ao ver-se-lhes a vida esvaziada de sentido, quer dizer: se não há o trabalho, que resta ao homem?

Versamos aqui sobre uma classe que, ao menos, tem na vida algum propósito… Mas aí está o que a peste ilumina, a despeito das evidentes fragilidades econômicas e sociais modernas: a vida orientada à profissão envolve um risco óbvio, agravado paulatinamente pelo tempo, de converter em doença fatal o vazio das mãos que se lhe veem escorrer pelos dedos o trabalho. Mãos que, aposentadas, poderão encontrar numa corda o seu único alívio.

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Ortodoxia, de G. K. Chesterton

Entupo-me a misantropia de quitutes e ela, em resposta, engorda. Assim completo mais um ano sozinho, sorrindo, e desta vez com um volume de Chesterton nas mãos.

Chesterton… Tivesse-o lido aos vinte, talvez o teria idolatrado… Mas assim são as coisas e bom que assim sejam! Eis que, atento às páginas de Ortodoxia, irrito-me. Em seguida, porém, exalto-me. E o resumo de meu juízo, após a calmaria das reflexões, é este: grande leitura! Pois é isso o que deixam as grandes leituras: fortes impressões.

Então vamos, agora, esmiuçá-las, expor o que me agitou nesta grande obra. Chesterton começa:

The men who really believe in themselves are all in lunatic asylums. (…) If you consulted your business experience instead of your ugly individualistic philosophy, you would know that believing in himself is one of the commonest signs of a rotter. Actors who can’t act believe in themselves; and debtors who won’t pay. It would be much truer to say that a man will certainly fail, because he believes in himself. Complete self-confidence is not merely a sin: complete self-confidence is a weakness.

Parecem palavras retiradas dos meus pensamentos. Entretanto, faço a nota: quão distante está Chesterton dos cristãos atuais! A modernidade — cristãos inclusos — está contaminada até a unha deste sentimento estúpido denominado por Chesterton como self-confidence. Quando a sabedoria, queiram ou não, começa exatamente em self-distrust.

Há, hoje, uma confiança difusa, seja no homem, seja no futuro, que nos cristãos se manifesta através da esperança indiscriminada. O cristão comum de nossos dias não hesita, nem por um único segundo, a respeito do que o futuro lhe reserva ou a respeito das próprias possibilidades. O que não é sinal senão de sua absolute weakness

Outro trecho virtuoso:

Imagination does not breed insanity. Exactly what does breed insanity is reason. Poets do not go mad; but chessplayers do. Mathematicians go mad, and cashiers; but creative artists very seldom.

Que é que conduz à insanidade? A obsessão em encontrar todas as respostas, em possuir controle absoluto sobre o meio. Por isso um matemático, um cientista, muitas vezes acaba incapaz de perceber-lhe a própria insignificância, a própria vulnerabilidade, a limitação de seus meios de ação e, considerando-se capaz de decifrar todas as variáveis, enlouquece, colapsa, pois as possibilidades humanas são, se muito, simplesmente limitadas.

Chesterton prossegue, em franco ataque ao positivismo moderno:

In so far as religion is gone, reason is going. For they are both of the same primary authoritative kind. They are both methods of proof which cannot themselves be proved. And in the act of destroying the idea of Divine authority we have largely destroyed the idea of that human authority by which we do a long-division sum.

Agrada-me essa franqueza. Chesterton ainda ressalta, em sua famigerada sentença: o problema na negação de Deus é o que se coloca em seu lugar. Fatalmente, crer nas possibilidades humanas é de uma infantilidade sem-par.

Pois bem. Eis que Chesterton começa a irritar-me. Já me indisponho com meia palavra de demagogia, meio verbo de incentivo à ação política… E se cultivo a resignação e o silêncio, então Chesterton pinta-me, subitamente, como o mais desprezível dos seres.

E vejo em Ortodoxia o que a mim, sem dúvida, é a face mais detestável dos cristãos: o maniqueísmo. Assim como sempre me causa fastio escutar de alguém o porquê de sua ideia ser a mais sensata do universo, passo a enfastiar-me da arrogância das palavras de Chesterton.

Ele começa atacando os estoicos:

Marcus Aurelius is the most intolerable of human types. He is an unselfish egoist. An unselfish egoist is a man who has pride without the excuse of passion.

Se não são como nós, pois como são odientos! E Chesterton, guiado pelas próprias convicções, classifica como os mais detestáveis aqueles que se negam a agir, a lutar, a participar ativamente da sociedade.

O que Chesterton faz, sem rodeios, é classificar a mim mesmo como um sujeito intolerável — justo no meu aniversário?… — E percebo que é impossível a nossa compatibilidade: Chesterton quer me convencer de sua razão e impelir-me à ação; eu não tenho o menor interesse em convencê-lo de nada e só quero um pouco de paz, distância e silêncio.

Chego a fantasiar, por um momento, o seguinte subtítulo para a obra: “Why me and everyone who is like me are the best human beings on the face of the earth and why everyone else who is not like me and does not think like me are intolerable and inferior”. E ouço a irônica e insuportável réplica: “Exactly. Do you have a better way to defend your beliefs?“.

Chesterton prossegue:

On the other side our idealist pessimists were represented by the old remnant of the Stoics. Marcus Aurelius and his friends had really given up the idea of any god in the universe and looked only to the god within. They had no hope of any virtue in nature, and hardly any hope of any virtue in society. They had not enough interest in the outer world really to wreck or revolutionise it. They did not love the city enough to set fire to it. Thus the ancient world was exactly in our own desolate dilemma. The only people who really enjoyed this world were busy breaking it up; and the virtuous people did not care enough about them to knock them down. In this dilemma (the same as ours) Christianity suddenly stepped in and offered a singular answer, which the world eventually accepted as THE answer. It was the answer then, and I think it is the answer now.

Ignoremos o justo mérito concedido ao surgimento do cristianismo. A partir deste ponto no livro, Chesterton passa a incentivar a ação, justificando, inclusive, a “violência” cristã. E o faz exaltando a plebe, em atitude que, novamente, traça uma clara linha entre nós. Simplesmente não suporto a convivência com alguém que me exige concordância integral.

Novas pedras atiradas contra mim:

By insisting specially on the immanence of God we get introspection, self-isolation, quietism, social indifference — Tibet. By insisting specially on the transcendence of God we get wonder, curiosity, moral and political adventure, righteous indignation — Christendom. Insisting that God is inside man, man is always inside himself. By insisting that God transcends man, man has transcended himself.

Moral and political adventure, righteous indignation… Quantos cadáveres seriam poupados sem semelhantes exaltações… Mas não prossigo: abstenho-me de convencer Chesterton. Sinto-me absolutamente desmotivado após vê-lo traçar o povo como a representação da prudência e da sabedoria.

A mim, o menor populismo já é repugnante. Exaltar a virtude popular é comprar a aprovação às custas da independência. Mas não taxo Chesterton de falso ou ardiloso; seria extremamente injusto. Entretanto, neste ponto, vejo mais prudência em Zaratustra:

É no deserto que sempre viveram os verídicos, os espíritos livres, senhores do deserto; mas nas cidades, habitam os sábios bem nutridos e célebres – os animais de trato.

Pois são eles que puxam sempre, como os asnos, as carretas
do povo.

Oportuno tocar em Nietzsche. Chesterton faz o seguinte juízo do poeta:

Nietzsche is truly a very timid thinker. He does not really know in the least what sort of man he wants evolution to produce. And if he does not know, certainly the ordinary evolutionists, who talk about things being “higher”, do not know either.

Minha observação: Nietzsche sabia exatamente qual tipo de homem desejava que fosse produzido; e esse homem é, em inúmeros aspectos, imensamente superior ao que seria o exemplo de wise man para Chesterton. Entretanto, é verdade, o homem de Nietzsche jamais será produzido em massa, pois esse homem é justamente o inverso do homem de rebanho.

Mas basta de objeções e debate! Este artigo já exige um ponto final. Assim, entremos com as conclusões.

Rege-me um princípio simplíssimo toda vez que efetuo um julgamento consciente de valor: considero o valor de algo como o saldo quando lhe contrapostas as faces positivas e negativas, exatamente como numa balança. Busco, sempre que possível, valorizar o lado positivo, pois a balança, mesmo que penda ao lado não desejado, normalmente me oferece algo que me exija o reconhecimento.

Assim, não hesito quanto a Chesterton: a exímia escrita, o humor de qualidade e a lucidez diante das grandes questões cristãs me não permitem o julgamento injusto. Falo de alguém franco e imenso.

Chesterton, porém, julga-me intolerável. Mas não sou como Chesterton: a ele guardarei espaço honroso entre os autores de minha predileção.

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A suavidade da língua portuguesa

O francês, cujos artistas trataram-no com delicadeza ímpar, possui particularidades sonoras interessantes, uma melodia única, porém minada por um “r” bárbaro que, a despeito do que dizem os franceses, estraga a fluidez melódica da língua. Os poetas gálicos, estes dignos de todo o mérito, souberam contornar magnificamente essa limitação. Além disso, la langue maternelle du bon sens et de l’intelligibilité universelle possui uma evidente escassez de palavras graves, o que faz com que grande parte dos vocábulos franceses terminem em som de “e” ou “o” tônico, empobrecendo a música da língua. Entretanto, estamos aqui falando de um idioma esteticamente muito belo, com rica sintaxe e extremamente desenvolvido.

O espanhol, com seu “r” irritadíssimo fazendo tremer todas as frases, vê-se em dificuldade para eliminar a tensão inerente da língua quando há desejo de produzir versos brandos. É língua aberta por ter proeminência em “a”, e aguerrida: língua para fazer versos de guerras e batalhas — e para encrespar com o vizinho.

O italiano, sonora e esteticamente belíssimo, dispõe de matizes variados. É uma língua equilibrada e melódica, mas há o mesmo “r” vibrante espanhol, ainda que em doses significativamente menores.

Por que destas observações? Para abordar algo estritamente português, que diferencia nossa língua de todas as outras românicas: a suavidade — e aproveito para dizer que não sei uma única palavra de romeno, ficando essa língua de fora da análise.

A língua portuguesa é naturalmente melódica e harmônica, muito em razão de nosso “s” dos plurais, que em espanhol é insuficiente para conter a tremedeira provocada pelos “r”, é inexistente em italiano e ocultado na pronúncia francesa. Em português, porém, posto sua pronúncia tímida, faz com que as frases calhem suaves, tranquilas, produzindo uma harmonia serena. Além disso, nosso “r”, quase sempre discreto, não faz vibrar como no espanhol e nem ranger como no francês (basta comparar rua com rue, trabalho com travail ou jarro com jarra para notar a diferença de agressividade dos “r”).

Assim, temos uma língua que, se possui preponderância em “a” e abundância em “s” como no espanhol, produz efeito contrário, evidenciando-lhes a oposição de caráter: o português, dentre as românicas, é a língua de índole serena.

É claro, é claro… a língua não é senão uma ferramenta de expressão. É possível alcançar efeitos semelhantes em todas as línguas. Mas vejo, por exemplo, a suavidade portuguesa como um atributo especial, que permite aos poetas uma harmonia inata e um efeito naturalmente mais forte quando lançando mão de palavras como “trovão”, “ribomba”, “estronda”, “estala”, “irrompe”, etc. (em que há consoantes oclusivas e constritivas vibrantes, em geral). Percebo, também, uma riqueza fônica que se destaca em relação a, por exemplo, o francês, visto a melhor distribuição dos fonemas e maior variedade de vogais. Isso sem falar na flexibilidade sintática…

Mas deixo claro: não estou aqui a declarar a superioridade de uma língua em relação à outra: isso seria uma absoluta estupidez. Enfatizo, ainda, que minhas impressões partem do ponto de vista de um nativo de língua portuguesa; resta óbvio que um russo provavelmente lhas não compartilharia. Contudo, posso dizer-me satisfeito com a ferramenta de trabalho que disponho (ainda que empobrecida esteticamente após desastradas reformas ortográficas…).

E para fechar o tema, vamos de um exemplo da boa aplicação dos recursos da língua portuguesa, em especial do uso do “r” com finalidade dramática, um dos objetos destas reflexões. O mestre é Bocage, e o trecho retirado de sua tragédia Vasco da Gama ou o descobrimento das Índias pelos portugueses. O efeito alcançado dispensa qualquer comentário adicional:

Com sacras illusões me hallucinastes,
E, a minha alma cingindo a lei nefanda,
Fizestes (ai de mim!) que preferisse
Ás luzes da verdade as sombras do erro:
Oppressores crueis, baldadas foram
A vossa tyrannia, as artes vossas:
Seus direitos um Deus em mim recobra;
Por veredas, que a mente humana ignora,
Aos meus, e a si me reconduz o Eterno.
Mas em que agitações; em que terrores
Meu animo fluctua? Ah! Que terrivel
Sombrio agouro o coração me enluta!
Que scenas de traição, de horror, de morte
No triste pensamento me negrejam!

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Sarcasmo, sarcasmo…

Vocês acabarão concluindo que sou incapaz de me afeiçoar: muito bem, muito bem… quase lá! E chegará o dia — isso parece-me evidente — em que eu não mais me suportarei. Pois a conclusão é óbvia: vejo em tudo mazelas… e a mim mesmo não me julgo demasiado especial… Contudo me agrada o meu próprio cinismo, e isso dá-me forças, distingue-me do mundo em redor. Penso por quanto tempo… Mas que opções teria ao meu feitio exótico? Digo: já estou contaminado. Poderia eu, hoje, neste estado, dizer palavras de esperança? Poderia crer-me uma exceção? Fazer de minha mente um teatro (como faço de minhas relações)? De forma alguma… meu cinismo jamais permitiria. Não vejo nos outros senão o que habita e lateja em mim mesmo, portanto encabeço, sem dúvida, a lista de meus condenados. Com a diferença, claro, da consciência e do sorriso sarcástico no rosto…

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